Sistinas
Rotundus
#35

Rotundus

Por favor pare antes que eu o faça de novo
Apenas fale sobre nada, vamos falar sobre nada,
Vamos falar sobre ninguém,
Por favor fale sobre ninguém, alguém, qualquer um
Eu e você temos uma doença,
Você me afeta, você me infecta,
Eu estou aflito, você está viciada,
Você e eu, você e eu

Infected - Bad Religion

No último andar da mais alta torre de Sistinas bate um vento gelado, que talvez tenha confortado os suicidas que dali se atiraram em outras noites. Era onde estava Willian agora. Olhando para as pequenas luzes lá embaixo, hipnóticas, convidando ao salto.

Agonia.

Não dava para descrever de outra maneira.

Sua gengiva sangrava dia e noite, além do gosto de pus que vinha sempre acompanhado com febre alta. Não sentia gosto de nada, por mais saboroso que fosse. Aliás, a comida sempre descia mal, nunca alimentava e deixava aquela sensação esquisita. Sua saliva estava grossa, espessa mesmo, e não cheirava bem. As dores percorriam cada músculo de seu corpo, e tudo ficava pior a cada hora que se passava.

Ele não era muito popular, pelo contrário, os óculos "fundo-de-garrafa" que usava junto com a roupa eternamente amassada e as sardas no rosto formavam um péssimo conjunto com sua cabeça pelada. Mas nem por isso gostava de ficar trancado em casa. Mas nos últimos dias estava assim. Trancafiado. Durante a manhã e tarde ficava num estranho estado de letargia. Então, quando chegava a noite, ele conseguia com muito esforço se levantar.

Nas últimas horas as dores pioraram, e ele simplesmente não sabia mais o que fazer. Tomara todos os remédios conhecidos, que estranhamente não fizeram efeito algum. Sabia que seu corpo estava mudando.

"Desde aquela noite..."

Willian então tirou a camisa na brisa noturna, e tentou pela enésima vez raciocinar sobre o acontecido. Sabia, no fundo, o que estava acontecendo, só não queria acreditar.

"Afinal, eles não existem, não é mesmo?"

Onde moram os vampiros? Eles se escondem tão bem assim, ou nós que nos recusamos a vê-los? Eles dormem em caixões?

Willian tinha a resposta para a primeira pergunta, ao menos. Eles moram em bibliotecas. Isso mesmo. Não é como mostra aquele filme, bibliotecas não são os lares dos anjos, e sim dos vampiros!

Ou pelo menos era o lar da sua. E não, ela não era linda, branquela, escultural como pintam os livros, contos e filmes por aí.

"Ok. Vamos do começo."

O campus da faculdade sempre foi visitado por morcegos no escuro da noite. Voavam dando rasantes na quadra de vez em quando. Não era novidade. O fato é que numa dessas noites, ele decidiu ir à biblioteca. Estava fechada aos estudantes, mas com a porta destrancada. Resolveu entrar assim mesmo.

Foi quando ele viu aquilo pendurado lá no fundo. No teto! Não era grande o suficiente para ser uma pessoa, nem pequeno para ser um morcego. Tinhas asas e traços do mamífero noturno, mas formas de um ser humano... Formas aliás bem femininas!

"Sim, estava tudo lá! Seios, a barriga de dar inveja à muita mulher por aí, pernas torneadas, quadril largo, e... Sim, órgão sexual feminino! Eu juro que vi!"

Willian sempre quis ser biólogo, mais por curiosidade do que por aptidão. Ele costumava abrir lagartixas no quintal quando criança... Quando viu aquilo, mesmo que quisesse não contaria à ninguém. E a criatura, estranhamente, se mostrou dócil ao estudante. Desde o primeiro contato, ela nunca falou, mas seus olhos diziam tudo. Totalmente pretos, como os de morcego mesmo. Seria cega como eles também?

"Não, tempos depois me aprofundei no estudo e descobri que morcegos enxergam sim, e muito bem!"

As noites seguintes foram repetições da primeira. Na verdade, ele não sabia o que fazer. Ia até a biblioteca, que inexplicavelmente nunca mais esteve aberta, mas nunca se atreveu sequer tocar na criatura. Queria observá-la, e um dia desejou levá-la para casa. Temeu ser descoberto. Temia que ela fosse descoberta e não queria perder sua querida.

"Querida? O que eu tinha na cabeça?"

Sabia exatamente o que tinha na cabeça. Um mórbido desejo de analisar profundamente aquela "mulher-morcego", como passou a chamá-la. Em certo momento, não sabia mais se era curiosidade científica ou algo além disso...

A verdade é que numa noite ele sentiu uma forte mordida no dedão do pé e acordou. Sua morcega estava lá, e sugava de seu sangue. Quando olhou em volta, precisou de muita calma para não gritar. O teto do seu quarto estava infestado de morcegos! Ela parecia ser a rainha deles, e chupava levemente o dedão de Willian. Lambeu com carinho durante vários minutos, e ele acabou tendo uma constrangedora ereção.

Talvez ela tenha ouvido mentalmente o desejo de Willian de escondê-la em casa. Talvez, mas ele nunca saberia. O fato é que ela se mudou, e passou a morar ali.

"Sim, ela me adotou."

Daí para frente ele se tornou mais recluso, passou a faltar na faculdade, e se interessar mais e mais pela criatura. Tanto que passou a compartilhar os mesmos horários estranhos. Como não ouvia a voz dela, com o passar do tempo ele também não falava mais. Os dois se tornaram cúmplices do silêncio. Vez ou outra ela soltava um guincho pavoroso, mas era só.

Acabou desenvolvendo um estranho relacionamento com ela. Sentia desejo pela mulher que morava debaixo daquela inquietante aparência de morcego. Queria vê-la deitada em sua cama, mas não conseguia convencê-la. Ela gostava de ficar o tempo todo pendurada, e aquilo lhe dava tontura só de olhar! Estava chegando num impasse, quando numa noite aconteceu...

Willian estava provavelmente tendo um sonho erótico. Desajeitado, pois com seu baixo grau de popularidade nunca tinha passado das apressadas preliminares com uma mulher. Tinha toda a teoria do sexo, a mecânica da coisa na cabeça, mas e a prática? Essa nunca tinha provado...

Naquela noite a morcega estava pendurada acima de sua cama, e ele foi repentinamente enlaçado pela cintura e erguido! Sentiu uma mordida muito dolorida no pescoço e ouviu o bater das poderosas asas, que era o que mantinha os dois no ar. Na escuridão total do quarto nada se enxergava, então ele penetrou algo úmido e quente. E como um adolescente em sua primeira relação sexual, teve uma ejaculação precoce, e a morcega o deixou cair pesadamente na cama, irritada.

O dia seguinte foi o último de Willian entre os humanos. Sua visão estava borrada, na verdade ele só enxergava em preto e branco. Desorientado, voltou correndo para casa, escondendo-se do mundo lá fora. Descobriu que a morcega tinha quebrado todas as lâmpadas da residência quanto tentou acender uma luz ao entardecer. Ela e seus amiguinhos ficavam pendurados no teto de seu quarto, e ele teve medo de abrir a porta. Parecia que a falha em ser macho o suficiente na noite anterior tinha afetado Willian... Nunca sentira medo de se aproximar dela antes.

"Maldita. Me senti acuado em minha própria casa!"

O medo passou ao estágio de paranóia depois de algumas horas, quando ele adormeceu no banheiro trancado, ouvindo os guinchos dos morcegos lá fora, e então ali, sentado na latrina, Willian decidiu que mataria a criatura. Não se sabe se por ter passado muito tempo sentado na mesma posição, suas pernas pareciam ter atrofiado. Quase que arrastando-se, segurando pelas paredes, ele chegou ao quarto. Encarou os olhares negros, e fixou-se num que brilhava mais que os outros, dois pontos brancos numa imensidão negra de asas e pelugem. Carregava uma enorme faca, que empunhou com mais força ainda quando foi novamente arrebatado da cama para cima. Sentiu em seu peito nu os mamilos duros da mulher-morcego, concentrou-se e então golpeou. Uma, duas, três vezes até caírem os dois no chão gelado, a criatura aos guinchos entre sangue, e então o negrume do teto desabou como uma avalanche de dentes em cima dele...

"Aqueles pequenos demônios alados, com seus dentes afiados, mordendo, cravando..."

Instintivamente ele voltou-se com sua faca, golpeando no escuro, matando tantos morcegos quanto podia, abrindo caminho em direção à parede. Tropeçou na mulher morta no assoalho, mas conseguiu abrir a janela, expulsando os morcegos para a noite lá fora. Com a fraca luz que entrava da rua, viu que tinha matado bastante deles. Mordeu e bebeu o sangue daquele monte de ratos voadores espalhados pelo chão, até chegar nela: nua, morta. Os contornos femininos ainda estavam ali, e ele não teve nem dúvidas, nem pudor. Penetrou-a e se satisfez, enfim.

"Quando já se está no inferno, a gente abraça o demônio."

Inferno. Se ela era uma vampira ele literalmente cortou o mal pela raiz: decapitou-a e arrancou seu coração. Por precaução. Então vestiu-se, pegou um táxi e pediu que o levasse até a construção mais alta de Sistinas. Isso por que - enquanto cortava a cabeça da mulher-morcego - notou que as asas dela nada mais eram do que uma gigantesca membrana que saia de seu corpo ligando-se ao quinto dedo.

Quando desceu do táxi o relógio marcava 23:04. O motorista percebeu que aquele rapaz, além de esquisito, tinha pele esticada entre os dedos. Percebeu assim que pegou a nota que pagava a corrida. Por um segundo imaginou o que o garoto escondia por baixo do sobretudo que usava. Com medo, fechou a porta do táxi e acelerou, deixando para trás aquela estranha figura na entrada deserta da torre do Observatório de Algol. O Aces High Bar no penúltimo andar estava fechado naquele dia da semana, por isso a calmaria.

A subida foi um suplício. Suas pernas quase não obedeciam mais. Tentou imaginar um morcego andando, e não conseguiu. Riu da idéia, e continuou a subir pelas escadas. Evitava um guarda aqui, outro ali, até chegar ao topo da construção. Olhou para a cidade lá embaixo e teve idéia da dimensão dela, de como era grande à perder de vista. Então tirou a camisa, olhando para a estranha formação entre seu cotovelo e costelas: uma membrana. Será que conseguiria planar?

Como um Ícaro mal resolvido, Willian foi até a beirada, abriu os braços e pulou. Seu coração parou de bater cinco segundos depois, e não sobrou nenhum osso inteiro de seu corpo...


Comentários do autor

Desmodus rotundus são os famosos morcegos vampiros que se alimentam exclusivamente de sangue de vertebrados, quando realizam um corte na pele do animal, com o auxílio dos incisivos e caninos.

"Rotundus" foi escrito em 09.05.05, num péssimo dia em que estive doente.


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