"Vivemos em angústia porque somos finitos e em desespero porque vivemos essa angústia num estado finito de solidão."
Paul Tillich
#37
A arrebatadora
Roxy não se enquadrava em nada. Alienava-se e fingia-se de antissocial, simplesmente por não ser tão vencedora quanto a sociedade queria que ela fosse. A obrigação diária de ser bonita e estar na moda pesava em seus ombros. Precisava estar alegre e ser desinibida, mas era tão difícil alegrar-se sendo feia (ou não tão bonita), tão complicado desinibir-se estando fora dos padrões da moda, principalmente dos estéticos.
A sociedade pedia que Roxy tivesse um estoque de energia inesgotável, que fosse inteligente e tivesse segurança e espírito de liderança. São esses os que dão certo, que vencem nos dias de hoje: os que se ajoelham no altar do deus ter e da deusa aparência.
Mas para Roxy - uma moça razoavelmente inteligente - era difícil sentir-se líder em qualquer coisa que fosse. Era mais cômodo odiar tudo, fingir-se de excluída... Isso ia mais de encontro à sua falta de energia, falta essa ocasionada por sua insegurança. E numa noite essa falta de energia deixou de ser apenas mental e passou a ser física também.
Veio sua primeira mudança de comportamento: Roxy deixou de acompanhar a moda, foi aos poucos se desligando das pessoas, ficando a maior parte de seu tempo disponível em casa. Dormia mal, pois sempre acordava pensando que tinha coisas melhores e mais produtivas a fazer do que simplesmente dormir. Diariamente carregando aquele ar lesado, cansado (pois quando não estava na cama, estava em seu computador, o ópio moderno) e desinteressado, Roxy deixou de render no seu trabalho, o que a fazia sentir-se mais e mais imprestável.
Você conhece ao menos uma pessoa assim, todos nós conhecemos. Aquelas pessoas sub valorizadas, boas no que fazem, mas que mesmo assim não são reconhecidas como deveriam. Ela sofre de humildade excessiva, mas não é aquela humildade saudável, de quem é sabedor de sua capacidade, que conhece seus limites e respeita o dos outros, que sabe exatamente do que é capaz e não precisa alardear sobre isso.
A humildade dela era daquela triste, de coitadinha. Um medo covarde disfarçado de falsa humildade.
Sobreveio a segunda mudança de comportamento: fechando-se em seu computador, Roxy - aquela moça tão interessante da internet - praticamente morreu para o mundo real.
E foi assim que acabou por conhecer Aello, numa rede de relacionamentos da internet, para onde costumava fugir quando sua autoestima estava nas últimas. Aello era uma dita gótica apaixonada por lápides. O tom alvo de pele e sua fria beleza física combinavam com o mármore que recobria os mortos, como ela mesma costumava dizer. Seus álbuns de fotos - tanto os reais quanto os virtuais - eram lotados de poses dela em diversos cemitérios de Sistinas.
O fato é que se criou uma amizade-relâmpago entre as duas, que passaram a sair juntas nas raras vezes em que Roxy resolvia sair do casulo. Em certos momentos não sabia dizer como era sua vida antes de conhecer a amizade daquela criatura tão doce que se mostrava tão interessada. Aello só tinha uma mania muito estranha: certas vezes olhava para o nada fixamente como se visse alguém. Certa noite, voltando para casa, Roxy arrepiou-se toda quando Aello falou:
— Está vendo aquela janela ali?
— Sim, o que tem?
— Uma menina acabou de se enforcar no banheiro. Ela está parada ali agora.
— Como sabe disso? Você vê gente morta, como naquele filme?
— Ela tá olhando pra gente.
— Bebemos tanto, tantas coisas, que eu poderia enxergar até o Elvis. Mas não estou vendo ninguém naquela janela. - Roxy brincou, mas a expressão da amiga continuava bastante séria:
— Ela está lá. Você só não enxerga.
Roxy encolheu-se, e apertou o passo. Aello falava com tanta convicção que assustava.
— Sabe, ontem tive um sonho esquisito... mas que foi pra lá de bom! - começou a falar empolgada, querendo mudar de assunto.
— Conte-me, Rox.
— Eu sonhei que vestia uma versão bem sexy da fantasia de chapeuzinho vermelho, e levava comigo uma cesta, exatamente como naquela história de criança. Então cheguei numa floresta assustadora, mas logo avistei uma cabana. Corri para lá, e quando entrei... adivinhe?
— O lobo mau estava te esperando na cama? - arriscou Aello.
— Não, mas devia ter uns oito, dez homens dentro da cabana. Todos besuntados de óleo, só de sunga e com máscaras de lobo!
— E você?
— Bem, todos eles desceram as sungas, e eu perguntei com uma voz bem safada: "Para que servem essas coisas enormes?" então eles me cercaram e me comeram, literalmente.
— Literalmente como? Te mastigaram?
— Claro que não, né? Você sabe, me comeram, oras. Todos juntos, muitas vezes...
— Então não foi literalmente, sua vadia burra! - riu Aello.
— … e eu morri.
— Ninguém morre de tanto dar, sua louca. Hahahaha, imagine!
Roxy insistiu, sem emoção no olhar:
— Tô falando sério, eu me vi deitada na cama dentro dessa mesma cabana na floresta. Morta.
— Eu estava lá? - perguntou Aello.
— Não. - respondeu a sonhadora, mas sem entender a estranheza da colocação.
— Então relaxe. Você anda pensando muito na morte, amiga?
— Um pouco, mas ultimamente com mais frequência.
— Influência minha. - Aello comenta, seca. Diante da perplexidade de Roxy, ela disfarça:
— Mas, na verdade, quero te convidar pra outra balada, amanhã à noite. Vamos?
— Eu vou onde você for, Aello.
— É no Devil's Whorehouse, já conhece?
— Só de nome.
— É uma casa meio depravada, mas tem espaço para quem só quer dançar.
— Aello... sabe o que tinha na cesta?
— Que cesta?
— Na cesta do meu sonho de chapeuzinho...
— O que tinha nela? Doces?
— Camisinhas. Acredita?
Aello riu, e se despediu de sua amiga. Na noite seguinte voltaria para acompanhá-la ao antro conhecido como Devil's Whorehouse. E Roxy preferiu não saber se uma menina tinha realmente se enforcado na vizinhança.
O segurança apalpou mais do que deveria a bunda de Roxy, e então a deixou entrar. Quando revistou Aello, achou um pequeno frasco num dos bolsos da moça. Quando ela piscou discretamente, ele lhe devolveu o vidrinho.
— O que é isso, Aello?
— Nosso passaporte pra diversão.
— Mas o que é?
— Vai saber amiga, vai saber.
Antes de entrarem no ambiente principal, as duas são abordadas por uma atendente trajando couro, que pergunta:
— O que procuram hoje? Algo picante, ou só dançar?
— Só dançar, respondeu Roxy. - e a mulher colou um pequeno adesivo fosforescente verde em sua camisa. Repetiu a pergunta à Aello, que também ganhou um adesivo verde.
Roxy observou por alguns instantes a pista de dança que fervilhava ao ritmo bate-estaca imprimido pela música. "Uma rave indoor", ela pensou. Então reparou em homens e mulheres que portavam adesivos vermelhos; os que optaram por algo mais picante naquela noite, e queriam que todos soubessem. Um mecanismo simples, mas deveras excitante...
— Beba. - era Aello, lhe oferecendo um copo.
Roxy engoliu o que parecia apenas água. Levemente amarga, mas ainda assim água. Pouco tempo depois foi tomada por uma euforia incontrolável, tamanha, que foi obrigada a perguntar:
— O que me deu, Aello?
— Ah, isso? - mostrando o vidrinho mágico - Ecstasy líquido, ou "G", como gosto de chamar, pois certamente desperta o ponto G de uma mulher! Agora dance comigo, dance como se ninguém estivesse te vendo, como se o amanhã não existisse, vamos dançar Rox!
— Que barato, adorei isso! - gritou Roxy, sentindo-se mais viva do que nunca estivera antes. A música entrava por cada poro de sua pele, o bate-estaca demolindo seu cérebro com suas convicções de certo e errado, de verdadeiro ou falso. Começou a gostar de ser encochada, de sentir-se desejada e apalpada. Tomou coragem e beijou Aello, que riu e arrancou dela o adesivo verde, a última fronteira de segurança e limite da realidade naquela noite muito louca. Agora ostentava o vermelho, picante, uma espécie de alerta da luxúria que atraiu os lobos escondidos na multidão dançante.
Como o bonitão musculoso que a abordou em plena pista. Que berrou coisas deliciosas em seu ouvido, que mordeu duas vezes sua orelha enquanto lhe dizia obscenidades. Que a puxou pela nuca e a beijou, invadindo sua boca com uma língua demoníaca que brigava com sua própria. Enquanto o beijava, sentiu tantas outras mãos em seu corpo, mas não queria que o momento acabasse, então não abriu os olhos...
Quando se deu conta estava num beco mal iluminado, braços esticados para frente, apoiada, de costas para alguns homens. A parede vibrava sob a palma de suas mãos, o som parecia reverberar por entre os tijolos! Provavelmente estavam na porta dos fundos da balada. A saída de emergência, e a emergência agora era o sexo! Roxy suava, tremia, e sentia a calcinha molhada em contato com seu clitóris extremamente quente. Alguém rasgou sua lingerie com um puxão. A saia curta que usava subiu até o umbigo, e algo duro entrou numa única estocada. Mãos fortes separavam suas nádegas e às vezes a forçavam a rebolar. Seu nível de sensibilidade era tanto que sentia as veias pulsantes do pau do macho.
À meia-luz percebeu que eram dois negros - um deles já abria a calça - o musculoso que arfava em seu pescoço enquanto metia e um magrelo de olhos arregalados. Foi puxada para trás, perdendo contato com a parede. Empurrada, caiu de quatro, ralando os joelhos no chão. Foi montada novamente com fúria. Sua visão foi bloqueada por um dos negros, que a segurou pelo queixo para chupá-lo. Roxy engoliu obedientemente o que lhe foi oferecido, sem perceber que sua mão direita já segurava outro membro, talvez o menos dotado dentre todos os caras.
"Legal pegar quando estão assim, ligadonas, né?"
"É bom que essas não desmaiam, sentem tudo que tá rolando!"
Roxy não sabia quem falava, nem com quem estava fodendo, nem a quem estava chupando. O homem à sua frente puxava forte seus cabelos e ela sentia descargas elétricas por todo o couro cabeludo. Alguém estapeava suas nádegas, e seu clitóris respondia pulsando de prazer.
"Aqui, vadia, já lambeu um saco preto?"
"Punheta vai, assim, com jeitinho. Pega nele direito!"
Num dos raros momentos de consciência, Roxy procurou por Aello com o olhar, mas não viu sua amiga. A iluminação precária do beco distorcia os rostos dos homens, que pareciam feras no cio. Dois deles se esfregavam no rosto dela, brigando por uma nova penetração em sua boca. O que mais a incomodava era sua obediência: enquanto terminava a chupada, colocou os braços para trás, segurando os próprios saltos da bota, oferecendo aquela visão submissa de seu corpo para os animais.
Depois tudo se acelerou, com os homens gozando em sequência, se revezando em molhar as carnes de Roxy e depois mostrar seus membros ainda úmidos uns para os outros. Eles balançavam para ela, apontando enquanto diziam coisas que ela nem tentava entender. Apesar de todo o abuso, Roxy teve a triste constatação de que não houvera violência alguma. Estava tão entorpecida que eles não precisaram obrigá-la a nada. As únicas marcas em seu corpo eram os joelhos ralados e as nádegas avermelhadas depois de tantas penetrações. Ela encolheu-se no chão, enquanto os homens subiam suas calças. Uns voltaram para o Devil's, outros foram embora dali mesmo, gargalhando bastante, satisfeitos.
Horas depois Roxy sofria em seu refúgio, como passou a chamar o lar. Já tinha chorado tudo o que podia e tomado três banhos demorados, na esperança de sentir-se menos suja. Esfregou a pele com tanta força que estava toda vermelha. Uma triste figura, que agora brincava com um canivete, sentada na cama. Não era a primeira vez que pensava em se matar. Quando passava o fio da lâmina levemente pelo pulso esquerdo, o telefone tocou:
— Onde esteve Aello, quando precisei de você?
— Eu, eu... não te vi, e fiquei te procurando pela pista. Sabia que tava alterada, então olhei em cada canto. Aquele lugar é muito espaçoso.
— Não viu os homens me levando pra fora?
— Vi que você estava se divertindo com o mais fortão deles. Depois não te vi mais, achei que estavam pelos cantos.
— Eu quero denunciá-los.
— Não pode fazer isso, Rox.
— Por que não?
— Bem, não vai poder dizer que foi drogada. A substância que te dei, o "G", não aparece no sangue nem na urina. Você também não bebeu álcool. A polícia vai pensar em tudo, menos em abuso. Como vai se defender disso, amiga?
— Eu quero me matar...
— Por ter feito sexo?
— Não, essa humilhação toda foi apenas a gota d'água. Minha vida já tava acabada antes disso.
— Foi humilhação?
— Eu não curti, Aello! Eu não estava lá! Meu corpo estava, mas eu não! Eles me usaram como uma boneca de sexo, e eu tô me detestando por isso. Estou machucada, não acho que outra mulher conviveria com essa vergonha.
— Uma mulher forte sobreviveria. - o tom de voz de Aello ao telefone era esquisito. Desafiador, meio que debochado. Roxy quase pode ouvir aquela voz que tanto gostava completar o raciocínio: "Mas você é uma mulher fraca..."
— Onde você está?
— Com uma amiga minha que tentou se matar.
Roxy riu forçadamente da situação: "Você atrai esse tipo de coisa, Aello..."
— Provoco.
— Sim, você é uma péssima influência. - disse Roxy, concordando inconscientemente com aquela afirmação macabra.
— Essa minha amiga não conseguiu.
— Não conseguiu o quê?
— Morrer. Está envergonhada, mas viva...
— Também estou envergonhada, mas quero estar morta! Eu quero me matar, está ouvindo Aello? Venha pra cá, preciso de você, em meus últimos momentos.
O outro lado da linha emudeceu.
— Aello? Eu quero mais.
— Mais? Mais o quê?
— G.
— Isso é fácil de se arranjar, Rox. Agora durma, eu chegarei logo.
Roxy desligou o telefone, com aquela sua obediência apática, seu característico desapego do mundo. Pousou a cabeça no travesseiro e sentiu-se leve pela primeira vez desde sua maioridade.
Quando Roxy acordou, Aello estava sentada ao lado da cama, velando por seu sono. Os cabelos meio encaracolados e soltos, emoldurando a pele branquíssima do rosto bonito. O olhar que trocaram foi intenso, cúmplice:
— Eu sonhei com você Aello. E no meu sonho você tinha asas, acredita?
A outra sorriu, acenando com a cabeça.
— Vi também um bando de cadelas negras querendo me devorar. Até senti o calor da respiração delas em meus calcanhares! O que será que isso significa?
Aello não respondeu e tirou o pequeno frasco do bolso. O poderoso ecstasy líquido que com apenas uma gota transporta ao paraíso, mas que em dosagem alta serve como passagem só de ida para o inferno!
— Eu quero. Me dê.
— Não vai deixar um bilhete, Roxy?
— E por que eu deixaria um?
— Não sei, as pessoas costumam fazer isso, seja como um bilhete de despedida, de protesto, de conforto para quem fica, ou de acusações. Testamentos, sei lá.
— Eu não tenho pra quem deixar um bilhete. Você é tudo pra mim, Aello. Não me deixe nunca. - ela tomou o frasco da mão da amiga, e bebeu todo o conteúdo que restava. Não era muito, mas também não era pouco.
— Eu nunca te deixarei. Prometo. Sabe por quê?
Roxy passou a língua pelos lábios, numa ansiosa espera pelos efeitos. Queria que a realidade desabasse, e que seu mundo morresse. Balançou a cabeça negativamente para a pergunta de Aello.
— Porque eu sou uma amante de suicidas. E eu odeio tentativas frustradas de suicídio, pois é a morte de um suicida que me faz viva. Todas as fotos minhas que já viu, nunca reparou nos detalhes? Eram todos túmulos de jovens como você. Todos que sussurrei em suas mentes, ditando que a morte é a solução final para todos os problemas.
— E não é? - o olhar frenético de Rox revirava-se nas órbitas. Veio sua primeira engasgada.
— Não, está apenas começando, querida amiga. A vida não será melhor do outro lado, para onde vai. Eu estarei lá com você, com a primeira de nós, minha irmã Obscura. Éramos três, mas nossa irmã Ocípite - que era veloz como o vento - foi morta por um dos filhos de Elohim. Nem mesmo ela poderia voar mais rápido que um anjo.
Roxy não sabia mais o que era realidade. As declarações de Aello podiam ser apenas fruto da superdosagem do tal "G". Seus músculos estavam mortos, e sua respiração agora era entrecortada e difícil. Sentiu um arrependimento genuíno, quase uma covardia, mas soube que não tinha mais volta nem salvação quando encarou aquele olhar negro, frio. Então sobreveio o medo.
— As cadelas... - balbuciou, tentando montar uma frase.
— Estão lá. Já sentem seu cheiro, na verdade. Fiquei impressionada por você, antes mesmo de morrer, já saber que são cadelas. Humanos geralmente as chamam genericamente de "cães infernais".
A suicida então arqueou, virou-se na cama violentamente e vomitou. Aello por reflexo pulou da cadeira de onde estava, indo parar do outro lado do quarto. Por uma fração de segundo suas asas negras (emplumadas, parecidas com as de uma grande águia) apareceram e sumiram. As unhas de Aello eram idênticas às de uma ave rapinante: pretas, longas e afiadas.
Roxy chegou ao mesmo estado entorpecido em que foi abusada sexualmente. Seus músculos não obedeciam, sua linha de raciocínio fugia e mesmo assim sua consciência permanecia. Era dolorido pensar, mas ela reuniu forças e perguntou:
— Por que me escolheu… veio me buscar?
— Você me chamou em sonho e pensamento, Rox. Inundou a internet nos últimos meses com poemas e declarações falando de morte. Sua morte. Faz tempo que te observo, faz tempo que quer um fim. Tão jovem e já querendo morrer; sem ao menos ter experimentado a vida. E não pense que é a única, já estive aqui em cima para buscar muitas pessoas que julgam ter problemas: desemprego ou morte de algum familiar próximo, por exemplo, são as maiores causas entre os mais velhos. Na sua idade os motivos mais comuns são violência familiar, problemas escolares ou abuso sexual, como o que você sofreu.
Roxy quase não respirava, e quando o fazia era com grande dificuldade:
— Você disse "já estive aqui em cima"... Quer dizer que mora lá embaixo? É para onde vou?
— Já devia saber, mas, na verdade, a localização não importa. Lá é o lugar onde "há choro e ranger de dentes"... É um lance cruel, sabe? Os que se matam por amor - querendo com isso estar mais próximo de seu amado - após a morte se afastam mais ainda dele, como punição.
À beira do coma, Roxy ainda pensou novamente que era tudo alucinação causada pelo "G", mas por fim entendeu que era real. Um simples movimento com a ponta do dedo demandava um esforço enorme!
— Ah, seu coração está desacelerando, batendo tão lentamente agora, em seus últimos momentos. Se você pudesse ouvi-lo enfraquecendo como eu posso, Rox... Sou uma Harpia: esse é meu orgasmo, meu clímax, meu desfrute!
A suicida não podia mais ouvir nada. Entrou em coma, começando a morrer devagar por conta da falência respiratória. Aello aspirou profundamente o ambiente, aproveitando ao máximo o sofrimento de Roxy. Ela, quando se desprendeu do corpo físico, não viu mais sua amiga ao lado da cama, mas sim uma criatura terrível com olhos totalmente pretos e nariz pontiagudo como um bico de pássaro. Os cabelos macios, sedosos e cacheados tinham se transformado em algo espetado, esquisito. A Harpia misturava-se com as sombras que agora cobriam o quarto, sendo quase impossível delinear a silhueta de suas enormes asas negras.
Aello lhe dirigiu aquele olhar fixo e macabro, igual fazia quando se deparava com espíritos. Aquela mania que tanto assustava Roxy quando viva, era sinal de que agora também a enxergava, ignorando seu corpo morto sobre a cama. Sabendo que carregaria eternamente na boca aquele gosto amargo de vômito, a suicida deu um passo para trás, quando ouviu um rosnado feroz às suas costas. Ela não teve coragem de se virar, e a Harpia avançou em sua direção, abrindo as asas.
Seu computador, que em vida tinha sido seu último elo com a realidade, travou e ficou repetindo monotonamente o mesmo trecho da última música pela madrugada afora: "Os sonhos nos quais estou morrendo são os melhores que já tive..."
Comentários do autor
As Hárpias (do grego hárpyia, "arrebatadora") são seres mitológicos com corpo, asas e garras de ave de rapina, e cabeça de mulher. Elas voavam à velocidade do vento, e raptavam cadáveres, para usufruir de seu amor e levá-los ao inferno. Aparecem sempre representadas nos túmulos como se esperassem o morto para arrebatá-lo.
A "G" é uma substância REAL, depressora do Sistema Nervoso Central, líquida, inodora e incolor. A música final de Roxy é "Mad World", do Gary Jules.
"A arrebatadora" foi escrito em 14.09.05. Reescrito em 2012 para o relançamento do site.