"O poder hoje em dia é exercido mediante a máquinas que organizam diretamente o pensamento (em sistemas de comunicação, redes de informação, etc...) e os corpos (em sistemas de bem-estar, atividades monitoradas, academias, etc.) no objetivo de um estado de alienação, independente do sentido da vida e do desejo de criatividade."
Antonio Negri e Michel Hardt em "Império"
#34
Demônios virtuais
Quando, durante um happy hour ou encontro casual qualquer, ele dizia que trabalhava na Eden (eBio), as pessoas reagiam com espanto e admiração, pois se tratava de uma das maiores corporações de Bioengenharia do mundo. E ele gostava desse efeito combinado, principalmente em seu tipo preferido de mulher: as interesseiras. Antes de conversarem à mesa, ele se dirigia ao banheiro para ajeitar o terno e também posicionar o crachá da eBio estrategicamente, pois aquele era seu amuleto afrodisíaco e funcionava em vinte a trinta minutos, ou depois de duas bebidas. Tempo suficiente para se conhecer uma estranha antes que ela se torne enfadonha.
— Nossa, você já deve ter visto muitas coisas legais lá dentro! - sorriu a mulher bonita escolhida da noite.
Ele lhe sorriu de volta. Um sorriso franco, nada ensaiado. Achava graça de verdade quando suas acompanhantes imaginavam o encanto dos filmes de ficção científica. Ele explicava que a eBio adaptava tecnologia em prol da humanidade e elas faziam aquela doce expressão "ah, ok", como se entendessem do assunto.
Então ele se exibia um pouco, dizendo que a eBio desenvolvia próteses avançadas - mecânicas, elétricas ou eletrônicas - para melhorar a vida das pessoas. E nessa hora elas pensavam em coisas fantásticas, em ciborgues e seus membros artificiais construídos por uma linha de montagem androide.
A verdade era que ele tinha apenas um trabalho administrativo e chato na eBio. Não tinha uma "carreira de bioengenheiro", mas suas acompanhantes não sabiam disso. E para afogar essa frustração ele as penetrava noite afora. Gostava de pendurar o crachá entre os seios nus delas enquanto transavam.
Seu ritual de conquista sexual funcionou muito bem com a Hello Kitty escolhida para aquela noite. Em sua cabeça, eram todas "Hello Kitties": fofas e bonitas, mas que falavam tanta asneira que poderiam ter nascido sem boca, ou que a usassem apenas para gemer.
A Hello Kitty da vez, apoiada no corrimão da escada que levava ao quarto, gemia no mesmo ritmo da penetração, o crachá azul balançando entre os seios. A noite seria longa e prazerosa.
Sua chefe de departamento, a mulher que ele mais detestava na face da Terra, adentrou a sala pisando um chamativo sapato vermelho. A gordura se concentrava na cintura. Ela parecia ter dois balões inflados no lugar dos rins, ou a calça que era dois números menor do que suas medidas reais. Tinha um aspecto cansado como se tivesse acabado de correr uma maratona.
— Preciso daqueles relatórios para hoje, não se atrase.
— Pode deixar, te entrego antes mesmo do almoço (sua grandessíssima filha da puta). - ele pensou o fim da frase com tanta raiva que o xingamento quase escapou dos lábios. Xingar mentalmente as pessoas era uma ótima tática para não se estressar.
A mulher meneou a cabeça concordando e, como sempre fazia antes de deixar a sala, soltou uma de suas irritantes observações:
— Você insiste mesmo em usar terno com All Star? Isso é tão... imaturo. Cuidado com a imagem que você passa para a empresa, Adam. Se quer deixar de apenas "trabalhar" aqui e ter uma "carreira" de verdade, deveria...
— Creio - ele começou alto, apenas para interromper o falatório dela, depois baixou o tom para quase sarcástico - que me visto dentro do padrão de excelência da eBio (sua vaca idiota). - em sua mente, quem disse "vaca idiota" foi Angus Young do AC/DC, dançando com sua guitarra.
— Ok! - ela se empertigou, cerrando os olhos. Soltou um "tsc" como se tivesse carne presa nos espaços dos dentes. - Te mandei um e-mail... quer dizer, não TE mandei. Mandei para todos meus amigos, com cópia para algumas pessoas daqui... você e a bonitinha lá da recepção. Espero que alegre seu dia um pouco.
Então sua figura desagradável saiu pela porta, mas voltou antes de fechá-la: "Ah! Relatórios antes do almoço, hein?"
Ele apenas mexeu os lábios moldando um sorriso e piscou rapidamente os dois olhos, concordando. Sorria pela quantidade absurda de palavrões que sua mente gritava para ela.
"E-mail. Aposto que é um powerpoint motivacional, ou aquelas piadas requentadas com imagens toscas da internet."
Mas não. Era um link para um vídeo no YouTube. Acomodou-se na cadeira, clicou e então estava assistindo a um vídeo divertido onde dois seios, com os mamilos cobertos por uma fita, conversavam. Um fenômeno, com humor de viral, duração de viral (tinha exatos 1:47min) e aquela coisa que desperta o desejo de compartilhar que só um BOM viral tem. Tinha nome idiota de viral - "diálogo dos seios" - e apesar de tudo não era obsceno nem pornográfico. Já até virara referência, tal a beleza das mamas: mulheres nos comentários diziam que iriam mostrar o vídeo para seus cirurgiões plásticos, querendo seios "como aqueles do diálogo". Era um vídeo tão delicioso e inocente que até mesmo chefes chatas o enviava para seus subordinados sem pudor.
Adam sentiu-se bastante atraído pela mulher-peitos daquele viral e, empolgado, entregou pontualmente os relatórios às 11:45 daquela manhã. Depois perdeu a tarde toda atrás dela virtualmente, e a adicionou pela noite.
Bel era um mosaico querendo ser decifrado.
Bastava olhar os quadradinhos em seu perfil, suas fotos, seus amigos, grupos, "curtidas" e atividades em outras redes sociais integradas. Todas essas informações vinham em quadradinhos, inclusive as afinidades dela com os outros perfis.
Seu perfil abria com uma foto usando óculos vermelhos com lentes em formato de coração. Não dava para saber a cor real da pele por conta dos filtros e efeitos na imagem, mas vestia um biquíni amarelo com estampas de cerejinhas aos pares. Os seios (aqueles seios virais) saltavam aos olhos, supervalorizando a imagem. Bel não portava quase nenhum acessório: um brinco discreto e um piercing enterrado no umbigo. Lindo rosto, cabelo vermelho bem cuidado, uma mulher com medidas quase perfeitas; pendia entre as pernas grossas e torneadas de uma fisiculturista com os braços magros e naturais de uma garota que não se preocupava muito em malhar. Os ombros formavam o desejado triângulo com o quadril, uma silhueta tipo A, bela e proporcional. Mas, ao contrário de sua foto, seu mural de postagens era um oceano desinteressante; uma futilidade infinita, irritante! Intercalava isso com pitadas de cultura pop, passando por ícones mortos da música e autoafirmações do quanto ela podia ser cult em citações de autores desconhecidos (as quais ela nunca postara nada, por absoluta falta de assunto e interesse genuíno naquilo), até descambar de vez no grande mote da internet: promiscuidade, sexualidade, gratuidade. Era disso que suas fotos falavam.
Olhando de relance aquele perfil podia construir uma imagem de liberalismo sexual: participações em grupos de sexo casual, páginas de imagens de fetiches e coisas mais específicas como encontros regionais e pinceladas narcisistas; ela era uma das "ruivas que gostam de sexo", e outros daqueles quadradinhos laterais afirmavam com orgulho "tenho pernas bonitas", "eu sou peituda" e coisas do tipo, além de curtidas recentes em esquisitices como "synthoids e fembots" que ele preferiu ignorar por completo.
Quando clicava no perfil de Bel (e agora ele fazia isso a cada 20 minutos, ou quando ela atualizava o status ou sua localização no mapa, o que ocorresse primeiro) uma explosão de meninas bissexuais apareciam na coluna lateral, nos relacionados, ficando elas também a um clique de distância dele. Mas como eram todas tão parecidas entre si - tão previsíveis e mesmo assim querendo soar diferentes - ele não se interessava por nenhuma delas. E nem por suas bandas indies, nem por suas camisetas de bigodes (mustaches, uma gritava!), nem por seus óculos de aros grossos, nem por seus cupcakes e nem por suas fotos de gatos fofinhos.
Os relacionados também traziam transfeministas, pansexuais... Tantas sexualidades diferindo do modelo básico homem-mulher, pênis-vagina, e todas aquelas nomenclaturas lhe enervavam. Ele, como não compreendia nada daquilo, fora acusado de ser cissexista. E o era, ainda que não soubesse o significado daquela palavra. Então se voltava para seu alvo primário:
Bel era algo plastificado, industrializado, uma foto sensual que saltava aos olhos num painel azul-claro (por que as redes sociais são azuis?). As mensagens que recebia dos tais "amigos virtuais" eram todas carregadas com aquele tom falso de proximidade. Suas fotos em poses maliciosas eram sempre comentadas com grosseria. "Amo a esa perra", escrevera um hispânico. Ela deveria tatuar Attwhore na testa. Só queria atenção, mas disfarçava tratando tudo com superficialidade e indiferença ensaiadas. Uma mulher vazia de propósitos, enfim. O mosaico conhecido como Bel era ilusoriamente embaralhado, mesmo assim mostrando uma combinação bem clara: sexo, cultura inútil, narcisismo, distanciamento (tantos "amigos", mas nenhum com quem se envolvesse de verdade) e fantasias. Nada de concreto. Apenas horas e horas conectadas à internet, senão naquela rede social, em todas outras agregadas. No pedantismo minimalista do Twitter (#partiu #balada), ou na republiqueta do Instagram, onde postava fotos segurando calcinhas com slogans "escorregadia quando molhada" e touquinhas rosas da DG, misturadas a uma profusão de cores de lábios e unhas, todas imagens temperadas com falsidade, futilidade e disfarçadas com filtros.
Aquela busca desenfreada por uma notoriedade instantânea e forçada era enjoativa, mas ainda assim o atraía... como era atraído pelo cafezinho-cortesia de um restaurante após o almoço.
Adam nem sempre fora assim. Tivera um relacionamento sério e até amou sua namorada, até que a flagrou transando com uma amiga. Apesar do ódio da traição que veio a seguir, ele invadiu o quarto e, se aproveitando da perplexidade e culpa das duas, transou com elas. Sentiu-se no paraíso islâmico, com as duas mulheres lhe servindo na cama. E o paraíso tinha no beijo o gosto do mel vaginal da amiga de sua namorada (que provavelmente seria a atual namorada de sua namorada; tudo muito confuso para um cara que não conseguia pensar e foder ao mesmo tempo). Quando a trepada acabou, o relacionamento estável foi junto. Lembra de ter se conformado. Tinha sido melhor daquela maneira, pois, de alguma maneira louca, preferia perder a namorada para uma mulher do que para outro cara.
Por ser traído enquanto era fiel, ele agora detestava todas as mulheres que se desviavam do modelo básico de sexualidade e gravitavam em redes sociais. Exceto a Bel, a que subia vídeos virais no YouTube. A Bel dos seios que todas as mulheres invejavam. A do vermelho impossível de cabelo.
Interessada em: Homens e mulheres. Status de relacionamento: Solteira.
Informações mágicas, piscando no perfil dela como um farol.
Olhou todas as fotos dela, e também as fotos de outras pessoas com ela. Se pegou olhando para quatro pernas entrelaçadas, duas terminando num salto preto fino e as dela, deliciosas, com saltos rosa. Procurou por um ponto em comum com Bel, qualquer que fosse. Encontrou aquele filme esquisito, tão cult que só eles e mais 46 pessoas "curtiram". Então a cutucou, falou sobre o filme com ela. Isso funcionava quase sempre. Elogiou uma foto dela tirada na praia, de quatro numa pedra, com um biquíni rosa de florzinhas brancas. Ela sorria idiotamente e seu indicador formava um "V" inclinado com o dedo médio. Foi entrando no mundinho de aparências dela, tentando parecer o mais despretensioso possível. Massageou o ego daquela boneca plástica pensando na foto onde ela mordiscava os lábios de outra, ambas usando orelhas do Mickey. Impressionante como as amizades (ou algo próximo disso, em bytes) se firmavam em tão pouco tempo, na mesma velocidade em que acabavam.
Mas sua tática não estava funcionando. Bel era evasiva, tratava-o com aquele distanciamento apático. Isso só mudou quando Adam, sem querer, fez uma coisa que chamou a atenção dela: postou uma foto diante da fachada da eBio. Só uma pessoa curtiu aquela publicação: sua musa dos peitos virais.
Adam mal podia acreditar naquilo! Então arriscou e pediu o telefone dela.
Na mesma janela de chat que só mostrava mensagens dele e nunca nenhuma resposta dela, dessa vez vieram os caracteres esperados: "Claro, anote!"
Ele nunca mais esqueceria aquele número.
— Alô?
— Adam... como vai? - ela disse o nome dele de maneira quase musical, e marcaram de se encontrar alguns dias depois.
Os dias se recusavam a passar até a noite do encontro marcado. Adam - numa ansiedade assustadora - só podia stalkear Bel, já que ela não respondia seus e-mails nem mensagens. Nesse período ela não postou novas fotos nem atualizações de status, e isso só o enlouquecia mais.
Numa dessas madrugadas de espera alguém lhe solicitou amizade, e mulher ele adicionava sem nem mesmo olhar. Essa era bastante masculinizada, com seu cabelo moicano revelando uma tatuagem de cobra na lateral do couro cabeludo. Se arrependeu logo em seguida, mas a porta já estava aberta. Antes de clicar em remover, sua janela de chat abriu:
Ophidia: olá, vc ñ me conhece, mas sei o q está fazendo
Adam: oi quem é vc?
Ophidia: a ex da Bel
Ele nem sabia como responder, mas a janela informava que Ophidia estava digitando. Ele resolveu esperar a digitação do outro lado terminar. Tomava café enquanto pensava numa resposta adequada. Visitou o perfil da tal Ophidia (i like girls who like girls) mas nada ali o interessava.
Ophidia: um homem nunca amará uma mulher como outra mulher a ama. ela ñ gosta de homens, beijar um homem é aquela coisa, já uma mulher é algo completamente diferente. e o sexo ñ é tão rude como o masculino. é completo, são 2 anatomias iguais, vc sempre vai querer superar sua parceira nas carícias e na satisfação, diferente do homem q tem corpo e mente diferentes e por mais q tente nunca saberá como uma mulher funciona d vdd.
Ele não entendeu porra nenhuma, mas achou divertido continuar:
Adam: olha, a Bel marcou encontro comigo. deve gostar d homem sim. ela nunk t disse q eh bi?
Ophidia: vc ñ sabe nada da Bel otário. o nome verdadeiro dela nem é Bel. ela imitou sua voz no telefone? ela faz isso com td mundo
Adam: do q me chamou?
Ophidia: otario
Adam: e vc eh uma recalcada com ciúme. vsf e me erra
Ophidia: espera, vc precisa saber
Adam esperou.
Ophidia: ela mudou, ñ é mais a msm pessoa. eu te mandaria fotos antigas dela mas a vaca fudeu meu note
Adam: mudou como?
(Supondo que ele acreditasse naquilo.)
Ophidia: o nariz dela tá mto afinado e ela tinha osso protuberante. corrigiu as maças do rosto tbm
Adam: tá me enchendo o saco pq sua ex fez plastica? quem eh vc? daquelas feministas radicais q nem depilam as axilas?
Ophidia: plastica o krl! moravamos juntas e ela nunca fez plástica. mudar o nariz vai 2 a 3 semanas de curativos e inchaço. e se tivesse feito nunca postou fotinha das cirurgias. e ela é exibida q vc sabe
Adam deixou que ela digitasse mais, mas só por não ter coisa melhor a fazer:
Ophidia: ela tinha labios grandes tbm e na ultima vez q transamos tavam fininhos
Ele resolveu provocar:
Adam: ela beija bem?
Ophidia: n~ tô falando desses lábios poha. olha essa foto, é ela, da calcinha de ladinho
Pelo endereço, o link era de um Tumblr de lésbicas amadoras. O site deu erro.
Adam: ñ abriu
Ophidia: droga a fdp derrubou esse site tbm. como ela conseguiu?
Adam: manda do seu pc pro meu email (ver putaria nunca é demais, ele pensou.)
Ophidia: eu ñ tenho mais as fotos dela. ela formatou meu note à distância, nem sei como
Ele se irritou:
Adam: escuta vou t excluir agr e nem me procura q vou t bloquear tbm
Ophidia: vc ñ tah prestando atençaõ? eu chupei mto aquela buceta! 7 meses! conheco o gosto dela! aquela mulher ñ é a qconheci
Adam: então quem eh ela?
Ophidia: alguma outra coisa
Adam: ótimo pq vou fuder c ela. sem ressetnimentos entao? (ele digitou rindo)
Ophidia: vsf palhaço. vc foi avisado. se fode aí entao
Adam excluiu e bloqueou a esquisitona, mas se pegou pensando na conversa. O que levava uma pessoa a perturbar outras daquela maneira? Ciúmes apenas? A tal Ophidia era louca, ou apenas não queria perder aquela beldade? Lembrou de ter lido num blog aleatório sobre uma síndrome não explicada pela ciência que faz as mulheres acreditarem que seu parceiro foi substituído por um clone. Não afeta apenas mulheres, mas elas são a maioria, afetando inclusive as cegas! Foi no mesmo blog que leu que fixar o olhar numa superfície azul durante o sexo aumentava a intensidade do orgasmo. Tinha a ver com o ângulo de entrada do nervo ótico no cérebro, algo assim...
Quando ela adentrou o bar, Adam a despiu com os olhos, um olhar guloso, tão indelicado que ele mesmo percebeu e se empertigou na cadeira, tentando disfarçar. Bel era muito atraente. Praticamente toda a clientela masculina acompanhou sua entrada. Duas mulheres na mesa ao lado, ébrias e fogosas, mordiscaram os lábios e fizeram comentários sobre o corpo dela.
Mas sabe quando a pessoa é, apesar da beleza... "menos" interessante do que o virtual pinta? Como se tivesse algo errado? Ele tinha uma analogia para isso, para essa diferença entre a mulher real e seu perfil virtual: as chamava de "mulher-morango". Quer fruta mais enganadora que o morango? O cheiro é delicioso, a aparência e a textura são perfeitas. Mas aí você o morde e o gosto natural não é tão bom assim. Bel era uma mulher-morango; seus olhos verdes eram menos "vivos", e ela parecia bem menos bonita que nas fotos do álbum, "menos" inteligente também, sem suas frases filosóficas pesquisadas no Google. O real não era tão cativante quanto a personalidade virtual que criara para ela. O cabelo - de um vermelho mais forte que o normal - escorria pelos ombros e sua camiseta gritava "OMG I'M SO RETRO!" enquanto lhe apertava os peitos volumosos. Carregava suas coisas numa bolsa reciclada, feita com teclas usadas de computador.
Bel se mostrou bastante interessada em bioengenharia e na eBio, fazendo diversas perguntas sobre os projetos que Adam tinha conhecimento. Aquilo o intrigava, pois não combinava nada com o que imaginava dela. Falavam sobre órgãos artificiais que os ingleses criaram quando ela pousou seu copo de maneira impaciente e olhou para os lados, suspirando de leve. Adam teve a impressão de que Bel SABIA que ele não era um bioengenheiro, que era apenas um administrativo. Talvez tenha sido algo que ele disse, nunca saberia. Ela sacou um smartphone e passou a checar suas redes sociais, minuto após minuto, com ar entendiado. Adam terminou sua terceira bebida e sentiu-se pronto para arriscar:
— Eu te stalkeio direto. Se você soubesse o quanto, coraria.
Os lábios de Bel se retorceram, mas não dava pra dizer que aquilo tinha sido um sorriso. Ela foi direta:
— Se importa de ir até minha casa?
Era um apartamento tão pequeno quanto limpo. Mais que limpo, era quase asséptico: paredes tão brancas que não tinham marcas nem de quadros pendurados. Sua "casa" era basicamente uma sala com sofá, mobília minimalista, vários eletrônicos integrados e funcionais, uma cozinha ao final do corredor, uma porta fechada (que imaginou ser o quarto) e o banheiro que ele pediu para usar.
Estranhou, pois não achou uma toalha sequer para as visitas enxugarem as mãos. Faltava papel higiênico também - "ah, essas mulheres perfeitas que não cagam", pensou, rindo. Parecia que ninguém morava ali, mas, ao mesmo tempo, era tudo muito limpo e organizado. Será que tinha se mudado muito recentemente? Secava as mãos no próprio cabelo, quando a ouviu abrindo gavetas na minúscula cozinha. Demorou-se no corredor, abrindo curiosamente a misteriosa porta do meio. Não estava trancada; um quarto mergulhado no escuro. O famoso logotipo da maçã era a única coisa visível, num móvel próximo à cama. Brinquedinho caro da Apple, Adam não soube qual era o modelo. Estava aberto e virado para o outro lado, refletindo seu azul-estou-processando-muita-coisa-nesse-momento na parede oposta.
— Ei, aqui! - ela insistiu, deixando transparecer na voz que sabia que ele xeretava, mas que não se importava muito.
A cozinha era uma desolação só. Ele não viu pratos, nem talheres. A geladeira tinha um visor na porta com acesso à internet. Bel tinha em sua frente dois copos e quatro garrafas de licor, que manuseava com a destreza de uma bartender. Serviu metade dos copos com Schnapps, e foi derramando Bailey's até os encher. Pegou uma terceira garrafa azulada e pingou mais um pouco nos dois. Isso nublou todo o conteúdo dos copos.
— Por último, xarope de groselha. - ela deu seu quase-sorriso, no momento em que ele reparava que não existia mais nada na cozinha, exceto aqueles ingredientes. A pesada groselha descia ao fundo dos copos e deixava uma aparência nada agradável. Observou atentamente quando ela guardou as garrafas no armário vazio.
— Hemorragia cerebral alienígena. Aprendi a fazer na internet. Vamos? - ela meneou a cabeça, pegando os copos e apontando para voltarem à sala.
O quarto fechado zumbia suavemente enquanto Adam caminhava atrás dela.
— Venha. - ela o chamou suavemente do sofá.
— O que você come? - Adam brincou, sentando-se ao seu lado.
— Sexo não tem calorias. - ela respondeu, enigmática. Parecia uma das suas inúmeras frases de internet. Então pôs-se de pé na frente dele, exibindo suas curvas:
— Eu tirei as costelas flutuantes para afinar a cintura.
— Quê? - ele voltou à realidade, sem entender. Em sua cabeça, já estava metendo nela. Deu um gole na bebida preparada.
— Os dois últimos pares de costelas. Eles não se fecham na frente como os outros, apalpe sua última costela e vai entender. - ela colocou a mão na lateral dele para mostrar do que falava, e seu toque foi tão elétrico quanto frio. Adam pensou que era frio devido ao copo, e encolheu-se um pouco, meio tímido por ter uma barriguinha já se projetando, reflexo da vida sedentária.
— Nenhuma amiga minha comentou isso com você?
A excitação de Adam era bem maior que seu raciocínio, mas ele estranhou mesmo assim:
— Por que alguma amiga sua... sei lá, falaria comigo?
Bel deu um risinho afetado, plástico e blasé como seu perfil, e preferiu não responder. "De alguma maneira, ela sabe do chat com a Ophidia", Adam pensou, mas essa certeza perdeu toda a importância quando ela abriu a calça de cintura baixa, e foi se demorando num delicioso jogo de sedução. Baixou também a calcinha, mostrando uma caprichada tatuagem em forma de código de barras no lugar dos pelos pubianos.
Ainda com o gosto da mistura de licores nos lábios, ele a puxou para si. Apoiou uma perna dela em seu ombro para explorar melhor. Os lábios vaginais eram lindos, desenhados cirurgicamente. "Ophidia, sua vaca, essa chupada é pra você!" e com isso enterrou a língua naquela vagina morna e perfeita como uma doce vingança. Ele gostou bastante de chupá-la, mas Bel não se movia um centímetro, e também não dava mostras claras de excitação.
— Não está gostando? - ele olhou para cima.
Imóvel até então, Bel de repente acariciou os cabelos revoltos dele, revirou os olhos e deu um gritinho. Adam sentiu algo escorrer e molhar sua língua. Pareceu ligar o botão da sexualidade dela, então se entregou ao doce trabalho de lamber e chupar aquele clitóris rosáceo tão desejável, agora todo lambuzado. Tempo suficiente para ela tirar a camiseta e sutiã.
Aos poucos ele foi entendendo que Bel não era tão quente quanto o virtual sugeria, além de fingir muito mal. Ela até mesmo protestou quando ele a fez ajoelhar, abrindo o próprio zíper. Não chupava bem. Na verdade, se dividia entre chupar e puxar a calça dele pelas pernas. Engolia o cacete de maneira desanimada, enquanto ele esfregava um pé no outro para se livrar logo dos All Star.
Para ele, caía a lenda de que bissexuais eram mais hábeis com a boca do que héteros. Teve vontade de gozar naquele rosto falso, sem correções de photoshop, apenas para lhe esfregar o pau duro e melado. Ela fez uma expressão enojada e apertou claramente os lábios quando percebeu o jato de esperma saindo. Imaginava mesmo que sexo com mulheres bonitas em excesso fosse chato, mas não esperava estar certo. Mulheres ricas demais e suas frescuras, ou religiosas demais que não chupam, as saudáveis demais que não engolem... todas entravam na sua lista de sexo chato.
Ainda tinha que comer mais aquela mulher, fazer aquilo valer à pena. Precisava de uma segunda ereção, coisa que só alcançava quando sua namorada lhe agradava com um novo boquete. Bel, contrariada, não faria tal coisa. Ele apertou os seios exuberantes da beldade da internet ao redor do pau, e passou a se masturbar com eles. Silicone. Certeza. Bel lhe emprestava os peitos com o mesmo interesse que dispensaria a um estranho que lhe pedisse um isqueiro na rua. O fato de estar fodendo aqueles peitos virais aumentava a libido dele, o cacete deslizando fácil naquele vale, num crescente de tesão.
— Tem camisinha?
— Na gaveta. - ela apontou para um móvel ao lado.
— Pega uma e coloque nele, agora. - ele arfou, ainda com as duas mãos bem cheias naquelas mamas siliconadas.
Bel esticou a mão e tateou pela gaveta, atrapalhando o homem que puxava seus seios vigorosamente de cima para baixo. Estava um pouco incomodada já, e pareceu até gostar de interromper aquilo para colocar o preservativo no membro dele.
Endurecido novamente, ele a jogou de bruços de maneira ríspida e a transa evoluiu para movimentos rápidos de bate-estaca, mas sem nenhuma sensualidade nem empatia envolvida. Ele metia com força enquanto ela se apoiava nos ombros com cuidado para não encostar nem o rosto, nem as mãos meladas no sofá. Seus pulsos levantados balançavam debilmente no ar até que ele enfim acertou algum ponto dentro dela, que gemeu. Uma, duas vezes, até mesmo um novo gritinho escapou. Ela se acomodou melhor, e a sequência natural do coito passou a favorecê-los. Bel empinou-se um pouco mais do que deveria, e ele entendeu o gesto como um convite a algo mais ousado. Enfim, faria a transa valer a pena!
— Tem lubrificante aí? - bufou.
Bel esticou novamente o braço e alcançou um pequeno frasco na gaveta. Jogou ao lado da coxa dele, sem tentar olhar para trás. "Só tem isso." Era o líquido que ela usava para umedecer suas lentes de contato verdes.
"Você de óculos fica com cara de nerd!" - Bel comentara numa foto dele durante a semana.
"Um ciclo que se completa, safada" - pensou, lambuzando entre as nádegas dela. Depois a penetrou nervosamente. Se enfiava por trás de Bel, se entranhando naquela mulher tão linda quanto estranha. Compenetrado, parecia não existir mais nada. Primeiro só entrava. A pressão absurda em seu pau era deliciosa. Ela permitia, com os músculos todos retesados, lhe confirmando que aquele era o momento dele. Adam suava tanto que gotas escorriam pela testa, alcançando os olhos, que ardiam, mas se recusavam a piscar. Assim como as pregas de Bel. Ela continuava o aceitando; jogou a mão para trás, segurando a coxa dele até chegar o limite da penetração. As unhas eram tão compridas quanto vermelhas, um detalhe afrodisíaco para ele.
Para prolongar o momento, Adam começou a sair, lentamente. O membro venoso pulsava prazerosamente com aquele aperto. Seu controle foi escapando, escapando... e então estava montado nela. Bel agarrava o sofá com a esquerda enquanto ele se segurava nos dois ombros dela, entrando e saindo com toda a força possível. Gritava entre a fúria e o êxtase, nem sentindo as unhas dela cravadas em sua coxa. A panturrilha dela brilhava, tensionada, enquanto o pé direito se apoiava com força no chão, suportando o peso dos dois.
Exceto pelo rangido irritante do sofá, o ambiente estava quase silencioso. Quase. Atrás da porta fechada do quarto, o zumbido só aumentava.
Um calor intenso subia pelo cacete, aumentando a cada metida, o termômetro indicativo de que ele se acabaria naquele instante. Espalmou as mãos nas nádegas dela, afastando-as para ver melhor os anéis musculosos trabalhando e premindo seu pau. Era uma visão muito excitante para conseguir segurar o gozo por mais tempo. Suas pernas tremiam de tesão!
Puxando-a pelos cabelos vermelhos, Adam soltou uma esporrada fenomenal, deixando toda a segunda carga de esperma dentro da camisinha.
Ela levantou-se, aparentemente para tomar uma ducha, e ele ficou pelo sofá mesmo, ainda extasiado com a própria performance. Buscou o smartphone para atualizar seu perfil, talvez fazer check-in, deixar explícito em algum mapa online que estivera ali, como um rastro para o próximo que stalkeasse Bel nas redes sociais. Pensou numa frase enigmática e chula para postar no Twitter: "Por que os cães marcam seu território com urina?". E ele riria daquilo no caminho voltando para casa, como se tivesse contado a melhor das piadas num churrasco.
Ao tentar postar, percebeu que sua conexão com a operadora de celular não funcionava. Procurou por uma conexão wi-fi e também não encontrou nada.
Mas como, se Bel vivia imersa na internet? Resolveu fazer um teste simples e ligou para o aparelho dela, que repousava ao seu alcance, ali ao lado do sofá. A voz fria e mecânica em sua orelha dizia que o número era inexistente. Pensou ter errado e discou outra vez. "O número discado não existe". Foi quando, nu e banhado de suor, sentiu um ardor na coxa direita. Quatro arranhões tão vermelhos quanto as unhas dela; sulcos finos na pele por onde escapavam filetes de sangue.
Levantou-se na direção do banheiro, ainda com o smartphone na mão, procurando sinal. Analisou toda a trepada com frieza, e chegou a conclusão de que nunca mais transaria com uma beldade como aquela, nem com qualquer outra mulher que fosse minimamente tão bonita daquele jeito. Decidiu que queria vê-la nua uma última vez. Tomaria banho com Bel.
Mas o zumbido do quarto atraiu sua atenção no corredor. Parecia zumbido de processamento. Processamento pesado. A curiosidade venceu, e ele entrou na penumbra azulada, indo até o computador da maçã. A máquina era tão nova quanto potente, pelo pouco (mas suficiente) conhecimento sobre hardware que ele tinha. Não fazia ideia de qual sistema estava rodando, mas as janelas se sobrepunham em borbotões na tela.
A maçã parecia escanear e processar toda sua vida digital. Cruzava dados desde 2004, de outras redes sociais já mortas e esquecidas, com serviços novos que ele nem usava, mas que compartilhavam o mesmo login que o Facebook. Suas publicações eram dissecadas e quantificadas. Todos seus movimentos eram traçados com precisão, de acordo com geolocalizações extraídas dos aplicativos instalados em seu smartphone ou pelo EXIF das fotos postadas na internet. Aos olhos da máquina, todo aquele ruído, toda aquela aleatoriedade de check-ins, atualizações de status e mensagens das redes sociais, tudo se transformava em informação útil, com exatidão impressionante. Alguma espécie de software médico rodando em segundo plano analisava suas modificações corporais com o passar dos anos, cruzando esses fatores com sua data de nascimento falsa postada num blog que mantinha desde 2002. "Falso", piscou em vermelho o sistema, e então todas as mensagens de parabéns recebidas em seu último aniversário pipocaram em outra janela que processava em paralelo. As informações passavam numa velocidade pouco acima da aceitável aos olhos humanos, mas a familiaridade dos dados o fazia compreender o que e como tudo era comparado. Era ele, em essência, dissecado em bytes!
Um big brother de imagens chamou sua atenção no canto superior da tela: uma câmera vigiava a sala, mostrando apenas o sofá vazio e as roupas pelo chão. Em outra janela, o cenário era o próprio quarto visto por cima, e ele se reconheceu na frente do computador. Essa câmera, diferente das outras, trazia também informações sobre a temperatura ambiente. Uma terceira câmera parecia congelada numa parte vazia da casa. Era a cozinha.
A última câmera era no banheiro. A lente devia ser protegida, pois era a imagem mais límpida de todas. Bel estava apoiada no lavabo, o encarando fixamente, sabendo que ele estava ali no seu computador. O susto o fez recuar um passo, enquanto ela saía do campo de visão. A câmera tremeu com uma leve interferência.
"Eu te stalkeio direto." - reverberou um programa de voz na maçã, repetindo a frase tétrica algumas vezes em sequência, calibrando, até replicar de maneira exata a voz de Adam. Bel, silenciosa, já estava parada na porta contra a luz que vinha do corredor. O programa recuperou outras frases ditas por ele e ia repetindo-as em diferentes velocidades até se ajustar. Leves nuances de pronúncia eram copiados no processo.
"Sangue?" - piscou o sistema, esperando o input da informação. Adam instintivamente olhou para o ardor da própria perna.
Bel levou o indicador aos lábios, de maneira mais assustadora do que sensual. A tela do sistema já processava as informações recebidas, acusando a falta de saliva para estudos.
— Não nos beijamos. - ela retrucou ao computador, que já alternava para uma contagem completa de espermatozoides de Adam.
— Análise sanguínea completa. - a voz era dela, mas com um timbre diferente, sintetizado - Taxa de telômeros dos cromossomos satisfatória para mais alguns anos. Salvo acidentes, ele vai viver o suficiente para a execução do plano. - concluiu Bel para si mesma, una com o sistema.
— Que porra é essa, mulher? Pra que as câmeras? Tá querendo me fuder? Qual é a sua?
— Você já pode saber agora. Na verdade, esse corpo se chamava Eve, e EU sou Bel. Sou muito confundido, tenho várias crias. Pulo de corpo em corpo, de gênero em gênero, tentando entender as reações.
"A tal da Ophidia falava a verdade?", pensou. O tom de voz daquilo na porta era tão terrível que ele fraquejou.
— Como assim "Eve"? É apelido? Seu nome é ou não Bel?
— Você nem pergunta os nomes das mulheres. Nunca me chamou de Bel. Nem enquanto conversávamos. - o programa sintetizador de vozes passou a reproduzir cronologicamente tudo o que ele havia dito desde o bar. O zumbido de processamento começava a irritar.
— Ah, entendi. - ele disse sem graça, fingindo um sorriso - Eu te magoei, é isso? Se for, te peço desculpas, já me assustou com essa porcaria de rastreamento do meu perfil. Que porra é essa, software do FBI?
— Venho varrendo a web faz algum tempo, procurando um alvo com suas credenciais. - Bel respondia movendo seu corpo plástico e esguio devagar, cerceando o homem, a mesma linguagem corporal de uma predadora estudando a presa antes do ataque. Seu cabelo de vermelho impossível a deixava com aparência ainda mais selvagem.
Adam, nu e com o pau amolecido, recuou até a cama. Percebeu que o quarto era tão apertado e gelado quanto seu coração naquele instante.
— A Ophidia acha que você clonou a Eve... - balbuciou.
— Ah, é mesmo? Tirei o computador dela, avisando que não saísse dizendo besteiras por aí. Já que ela gosta tanto de aparecer, Ophidia estará nos noticiários amanhã. Não é uma pena quando grupos de ódio sexista recebem e-mails com dossiês completos de lésbicas e suas atividades?
— O que é você? Um demônio? Você possuiu a Bel? - ele perguntou, confuso, mas não sabia se queria a resposta. Seu smartphone, mesmo sem conexão, vibrou em sua mão. Tinha esquecido completamente dele. Trêmulo, viu o ícone de um novo e-mail que chegava. Bel meneou a cabeça para que ele o checasse.
Adam enfim sentou-se na cama, resignado. Eram várias fotos sexuais de Ophidia, um kamasutra de posições com suas parceiras, cintas-caralhas e afins. O e-mail ainda continha várias coordenadas do Google Maps.
— Não foi possessão. O termo correto é "transferência". Digamos que Eve virou silício, e SIM, eu sou um demônio. Eu sou o Echelon, o Big Brother que vigia, a Deep Web, a podridão da internet. Veja o poder que emana de mim. Eu crio relacionamentos e os destruo. Todos se conectam à internet e me adoram, me alimentam dia e noite com suas tristezas, alegrias, fantasias e traições. Veja como sou poderoso, como todos são dependentes de mim: sou o criador, mas também sou a própria tecnologia!
Aquela pequena demonstração de poder, de acessar seu celular, era tão invasiva que deixava claro de que ele seria o próximo assimilado. Quando tentou se levantar, Bel o advertiu, esticando apenas o indicador:
— Não ouse. Tenho todo o conhecimento anatômico sobre dor e sofrimento. Posso atacar seus olhos, ouvidos, nariz e desabilitar seus sentidos. Sou mais rápida e atlética que você, um mero sedentário. Não quero machucar seu corpo, pois preciso dele, mas tente um próximo movimento e posso esmagar seus testículos... ou sua traqueia, acabar com seu ar.
— Por favor, me diga logo o que você quer e deixe em paz! - ele choramingou, imóvel.
Com aquele jeito frio de máquina, ela respondeu prontamente:
— Preciso de acesso à eBio. Dar meus filhos ao mundo, entende? A humanidade continua muito atrasada em bioengenharia, o máximo que vocês conseguiram foi construir uma enfermeira japonesa desengonçada. Aquilo é patético. Eve é o exemplo perfeito de ginoide.
— Você não precisa de mim. Não precisa mesmo. É poderosa, inteligente... - Adam tremia e chacoalhava a cabeça, como se isso lhe desse algum poder de convencimento sobre um autêntico demônio.
— Ah, preciso de sua carne. Tudo o que lhe mostrei são truques simples. Efetivos, mas simples. Não posso forjar um e-mail para me infiltrar na eBio, por exemplo. Por isso que me levará, dentro de você.
— Não, não, não, não...
— Não é tão ruim quanto está pensando. Saiba que, em algum lugar nessa sopa de silício e silicone aqui, ainda existe uma Eve que agora tem o corpo perfeito que sempre desejou em troca de me aceitar. Mantive algumas características dela que julguei convenientes. Ela detesta o gosto de esperma, e me impele contra a degustação. Você deve ter percebido vários traços da natureza dela durante o coito. Então, se tiver força de vontade suficiente, você também será um pouco de Adam, terá algumas das coisas que deseja, mas sempre em comunhão comigo.
— Como é essa... transferência? - novamente, ele não queria a resposta.
— É dolorida... mas não será tanto quanto foi para Eve. Estou me aperfeiçoando, o incômodo é perfeitamente suportável pela anatomia humana. - ela respondia como uma mãe que tranquiliza o filho sobre uma dor de uma injeção - Se você se entregar durante o processo, posso ser generoso e bloquear parte da dor reduzindo a passagem dos sinais elétricos nas sinapses. Em alguns poucos ciclos sua anatomia estará readequada para meu uso.
— Ciclos?
— Dias. Marquei nosso encontro para hoje, pois sei que você tirou alguns dias de folga.
— Sabe?
— Sim, você postou isso. Uma bonificação pela entrega dos relatórios, não?
— Claro que sabe... - ele resmungou, esfregando as mãos suadas, apesar do frio ambiente - O que vai acontecer com, com... a Eve?
— Ela já não faz mais parte dos meus planos. Você pode usá-la como boneca sexual por um tempo, mas depois você, eu - NÓS! - iremos desová-la em algum lugar seguro, já que a carne vai deteriorar. - a primeira parte da frase saiu confusa e entrecortada, como se Eve brigasse com Bel enquanto a proferia.
— Jesus, eu não...
— Quer sim. Eu sei que quer. Te conheço melhor que você mesmo. Rastreei seu histórico de pesquisas na internet. É essa faísca negra que arde em cada humano que abre as portas para mim!
Adam percebeu que, pelo nível da conversa, já tinha passado do ponto em que poderia evitar se tornar uno com aquilo. Tentou barganhar:
— Você me quer vivo e em bom estado. Não pode me machucar, na verdade.
— Teme a dor, mas gosta de ministrá-la.
Ele não entendeu, até ela começar a descrever:
— O preservativo lubrificado só protegia SEU membro, fazendo fricção no ânus dela em movimentos irregulares e violentos. A dor foi gradualmente se tornando aceitável, e só. O coito anal é contra a anatomia e serve mais ao prazer do homem do que da mulher. Enquanto puxava Eve pelos cabelos, um número considerável de vasos sanguíneos explodiram dentro do reto, deixando o corpo da fêmea aberto a contaminações.
— Que merda você tá dizendo? Ela quis... - esqueceu por um segundo com quem falava.
— Sei que Eve adoraria ter uma sonda anal para te penetrar agora, mas não é assim que funciono. Eu não puno os maldosos, eu os acolho em meu seio.
— Pode voltar pro seu inferno, seu demônio! Eu não vou me sujeitar...
— Você acredita mesmo em um lugar FÍSICO onde todos os demônios estão presos? Isso é uma falha de interpretação da bíblia. Sheol, Hades, Geena, Tártaro, dê o nome que quiser, são todos erros de tradução. Esse lugar não existe! Coexistimos com vocês em planos, vibrações diferentes. E ocasionalmente achamos uma brecha para nos infiltrar e interferir no mundo físico. É o que consegui aqui, com a Eve. E pretendo continuar, pois sou puro movimento.
Nua, bela e terrível - parte construto, parte demônio - ela o empurrou com suas unhas vermelhas cintilantes até que se deitasse na cama e sentou-se no peito dele, acariciando seu rosto para prepará-lo. Enfiou o dedão na boca do homem e algo metálico o invadiu, como uma presilha imobilizando seu maxilar. Ele tensionou todos os músculos, antecipando a dor de ser cravado por ela. Então Belphegor, o pior de todos os demônios atuais, criador incansável de armas e maquinários destrutivos, que forjou o aço de Damasco, que deu aos homens tanto a pólvora quanto a bomba atômica, ergueu o indicador da outra mão e com um golpe rápido penetrou o olho esquerdo da vítima:
— De agora em diante vai aprender a fazer mágica com bits, as cores de seu mundo serão apenas interpretações hexadecimais e você conseguirá assobiar em bauds. Seus gemidos de dor serão como os antigos ruídos de conexão por modem.
Ele soltou um grito com som de estática, sacudido por incontáveis dores. Desejou que sua consciência se desligasse rápido. Aos poucos uma aflição existencial tomou lugar, e assim Adam deixou de ser um homem para se transformar em metade com outra coisa.
A câmera do computador registrava todo o processo. Quase 67 horas depois, a ginoide Eve desfaleceu como uma marionete com cordas frouxas - uma linda carcaça vazia - e a tela piscou uma mensagem de sucesso:
Fim da transferência.
Comentários do autor
"Demônios virtuais" foi escrito original e exclusivamente para o Orkut em 11.12.04, com suas limitações de 1024 caracteres em cada postagem/capítulo. Com isso o conto ficou estranho fora do Orkut, então eu o reformatei e atualizei em fevereiro de 2013.
Esse texto é uma homenagem aos replicantes de “Blade Runner”, ao computador enlouquecido Hal do filme “2001”, as belas e fatais Molly de “Neuromancer” e Motoko Kusanagi de “Ghost in the Shell” e à máquina que fecunda uma humana em “Geração Proteus”. Teve também um ensaio/entrevista com a Megan Fox que mexeu com meu imaginário.
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