Sistinas
Corpos sem alma
#33

Corpos sem alma

Ao amanhecer de 7 de abril de 1903, a forca estava pronta.

A taça de vinho, que fora seu último pedido, era para erguer um brinde ao maligno. Seria pendurado até a morte. MAETH.

Tudo lembrava aquela criatura. Ela esteve no pensamento dele durante os últimos quinze anos, e, mesmo agora, na última noite de sua vida, Severin Antoniovich Klosowski não pode dormir.

No começo, após sobreviver ao primeiro e único encontro com aquela... coisa, ele dormia com uma faca escondida sob o travesseiro. Isso até a idiota da esposa - Lucy Baderski - estragar tudo. Ele quis arrancar a cabeça gorda dela e enterrá-la no jardim; uma imbecil incapaz de cuidar do filho do casal. O ano era 1891, e eles estavam em Nova Jersey, na América, bem longe do antigo endereço dele, uma discreta barbearia de Cable Street, 126. Sim, acredite, ele era um barbeiro. Mas antes disso, aquele judeu polonês fora cirurgião no hospital de Varsóvia até migrar para Londres.

Londres, Whitechapel. Não, ele resolveu ir para longe. Bem longe, na América, além do atlântico. Mas ainda assim Severin temia a criatura. Só teve alivio quando encontrou aquela moça (Carrie, não era?), onde descontou toda a fúria pela morte do filho. Ele tentou, engravidou Lucy, quis ter uma vida normal... Mas ele pode? Não, não pode.

Aquela moça, Carrie. Foi tão bom correr os dedos em seu pescoço, apertar e depois abrir, brincar com ela... Tão bom, tão certo quanto antes.

Antes daquela criatura em Whitechapel.

Ele quis voltar à Londres, e realmente voltou no maio seguinte. Lucy não era mais sua. Ela voltou sozinha para a Inglaterra antes, já ele voltou tão excitado após Carrie que se casou novamente, agora com Annie Chapman, um nome do passado coincidentemente, que soava tão agradável aos seus ouvidos... Tanto que resolver mudar, passou a ser chamado de George Chapman.

Ele desistiu dela em 1894, tudo por causa daquela pianista. Mary. Suas mãos de fada percorriam as teclas, tecendo melodias enquanto ele barbeava os clientes. Sim, ele voltou a ser barbeiro, assim como voltou a maltratar a mulher ao seu lado, uma sina. Gostava de espancá-la, e só agora, à beira de seu próprio enforcamento que ele relembra: a primeira vez que bateu em Mary foi por ver claramente as feições da criatura sobrepostas ao rosto dela...

A criatura de Whitechapel sabia que ele estava de volta. Então ele não poderia... brincar com Mary Spink. Decidiu que era hora de usar aquele molho sem cor nem cheiro que conseguiu comprar graças aos seus conhecimentos sobre as propriedades do antimônio. Sempre que espancava sua mulher, ela obedientemente fazia tudo o que lhe era pedido, inclusive beber das pequenas doses...

A barbearia, obviamente, deixou de ser um sucesso com Mary vomitando duas vezes (ou mais) por dia. O negócio acabou por falir. É nesse ponto, no ano de 1897, que pela primeira vez a lei dos homens se aproxima dele. George Chapman diz que a esposa morrera de tuberculose, negando a verdade; que em anos de envenenamento metódico e calculado ela já praticamente não tinha mais estômago. Uma morte lenta e dolorida para ser apenas tuberculose, não?

Para despistar a polícia, ele casou-se com Bessie Taylor. Quis deixar a poeira baixar, mas novamente a criatura voltou para assombrá-lo. Tinha que espancá-la toda noite, até decidir que usaria antimônio novamente. Tratou de ser mais cuidadoso dessa vez, controlava tanto as doses que podia decidir se ela teria diarreias ou apenas ânsia de vômito.

Bessie morreu em 1901. E ele descobre Maud Marsh, e também aprende que pior do que uma mulher, só duas juntas. Ela tinha uma mãe que se importava, e muito, com a filha. Foi a senhora que decidiu levá-la ao médico, estranhando as fortíssimas dores no estômago que a afligiam.

Mas George Chapman - que já tinha sido Severin - não deixaria outro médico analisar sua mulher no dia seguinte, e no jantar lhe dá tanto antimônio que ela nem chegou a deixar a mesa, morrendo envenenada ali mesmo. Sua mãe exigiu a exumação do cadáver, e a polícia exumou as outras falecidas esposas também, encontrando, claro, veneno em todos aqueles corpos. O segredo macabro tinha sido descoberto e revelado!

O envenenador olhou para a forca, na aurora do século: "Mal sabem eles que isso pelo qual me enforcam não é nada..." Então ele se vê pendurado; a corda fechando suas vias aéreas, fechando também sua jugular, obstruindo a carótida, que por reflexo reduzirá suas batidas cardíacas devido à alta pressão nas artérias, causando um colapso definitivo no coração. Imaginou-se morrendo, mas não era sua hora ainda...


1888.

O bairro londrino de Whitechapel era um labirinto de pátios, becos e vielas mal iluminadas por lamparinas a gás, atravessado por carruagens e prostitutas mal-vestidas, vagabundos, marinheiros, estivadores, pedreiros e açougueiros. As ruas viviam atoladas de excrementos e sangue. Lixo e entulhos acumulados misturavam com água de esgoto, e o lugar exalava um cheiro realmente horrível.

Mas, fugidos de perseguições na Prússia e leste europeu, uma crescente onda de imigrantes judeus se estabelecem em Whitechapel, atraídos principalmente pelos aluguéis baratos. Com seus costumes e regras de higiene, eles acabam sendo benéficos, melhorando as condições sanitárias daquela região, um lugar tão pobre "que era raro ver uma camisa limpa e cabelos penteados".

Os empregos mais comuns eram na confecção de bolsas, chinelos e caixas de fósforo. As mulheres limpavam pisos, eram costureiras e lavadeiras. A polícia estimava em torno de mil e duzentas prostitutas, sem contar as mulheres que eventualmente prestavam favores sexuais para complementar a renda. O incesto era muito comum, e meninas de doze anos já faziam sexo por dinheiro, algumas até transavam com marinheiros apenas para obter um passe, algo que lhes permitiria fugir dali.

Mas o puritanismo e o rigor moral da era vitoriana influenciava as pessoas, e algo despertou no meio das vielas frias e escuras de Whitechapel, para desempenhar o papel de exterminador. Armado com sua longa e afiada faca, escondido por entre o fog, a neblina londrina que parecia saída diretamente do inferno para aquela região, ele decidiu começar seu trabalho macabro...

Durante o dia, os gritos irritantes dos jornaleiros se misturavam com os dos animais mortos nos abatedouros. Era como se o Banshee - criatura lendária escocesa cujo grito anunciava a morte - caminhasse livremente pelas ruas.

Mas nunca saberemos se ela gritou, naquela madrugada de domingo, 6 de agosto. Uma prostituta de trinta e nove anos foi encontrada assassinada em George Yard. Ela foi esfaqueada várias vezes no corpo, pescoço e partes íntimas. Chamava-se Martha Tabram, e era uma das nove mil almas perdidas que sobreviviam em pensões, que se não tinham dinheiro para pagar por um leito, deviam encontrar alguém com quem dormir pagando com sexo, para não ficarem pela rua.

Poucas horas antes do crime, guiado por iluminação divina, George Akin Lusk, um judeu empreiteiro de obras e membro importante da sinagoga de Whitechapel, saiu acompanhado com outros dois homens de sua confiança. Estavam em alguma margem do rio Tâmisa, moldando algo em barro, e demorariam em voltar para casa naquela noite. Lusk era um grande homem, muito sábio e versado na Torah, no Talmud e na Caballah:

— E Ele insuflou em suas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivo. - disse, e uma estátua feminina se ergueu, nua, e o encarou. Ainda estava úmida da água do rio.

— Paracelso, o grande alquimista da Idade Média, afirmava ser capaz de criar criaturas vivas com poderes mágicos, em ovos ou em recipientes de vidro misturando apenas terra e água, mas nada se compara com isto! - disse um dos homens que ali estava.

— Homunculus? Não, meu amigo. Essa estátua é um golem, até mesmo a bíblia fala deles. Já o Talmud, que guia minha vida, diz que somos formados por letras e números. Acredito que, com as combinações certas, posso criar seres a partir do nada, como acabo de fazer...

Enquanto cobria a nudez da recém-nascida mulher de barro, George Lusk sabia que tinha criado um milagre, mas, ironicamente, isso era sinal de que tempos negros se abateriam sobre seu povo.

Essa criatura, ainda sem um nome dado por seu criador, seria vista nas ruas caçando numa madrugada de sexta-feira, 31 de agosto. Poucos notavam sua presença, e esses poucos percebiam que havia algo de sobrenatural nela.

— Por que se prostitui, mulher? - alguém perguntava a Polly, uma bêbada de quarenta e dois anos de idade.

— Preciso do dinheiro. - ela respondeu, e quando sorriu mostrou que lhe faltavam os cinco dentes da frente.

— Essas ruas estão imundas. Terei que lavá-las com sangue, e só então estarão purificadas!

Quando o comerciante George Cross saiu para trabalhar, um pouco antes das quatro da manhã, a viela estava iluminada apenas por uma lamparina. Ele viu algo caído na calçada. Parecia ser apenas um grande fardo, contendo alguma coisa, mas não...

Era uma mulher, e seu vestido estava erguido até a cintura. Achando que se tratava de uma vítima de assalto ou estupro, George pediu ajuda para outro homem que passava por ali. Nenhum deles tinha ideia do horror que estava em suas mãos. Apenas quando o policial chegou e iluminou o corpo com sua lanterna é que Whitechapel, e consequentemente toda Londres, descobriram que um predador noturno, a personificação da morte agora silenciosa e sem face, mancharia ainda mais com sangue as ruas dali até o rio Tâmisa!

A infeliz prostituta, que permanecia com os olhos abertos encarando o vazio, teve a garganta cortada de uma orelha à outra por duas vezes, com tamanha brutalidade que a lâmina penetrou até sua coluna vertebral. Essa foi a causa da morte, segundo o doutor que examinou o cadáver no necrotério. Seu abdômen estava totalmente dilacerado, por onde as vísceras foram retiradas com uma lâmina de, no mínimo, vinte centímetros.

O inspetor responsável pela investigação era o experiente Frederick George Abberline. Ele identificou a mulher como Mary Ann "Polly" Nichols, uma vida que chegou ao fim cercada pela pobreza de sempre: seus pertences eram apenas um pente, um espelho quebrado e um lenço.

Esse crime - somado à morte de Martha Tabram, duas prostitutas miseráveis evisceradas - acorda de vez a opinião pública, que percebe que não se tratam de assaltos, nem de estupros, pois não existem sinais de atividade sexual, nem vestígios de esperma. Todos agora sabem que na escuridão da madrugada, um assassino maluco está solto! É quando surge o boato do "Avental de couro", um judeu que conserta botas e que já foi visto espancando mulheres.

— Judeu assassino! - gritava o jornaleiro, agitando a edição do "The Star" nas mãos. - Saibam tudo sobre o estrangeiro que veste um avental de couro e usa bigodinho preto, leiam os depoimentos das mulheres que se encontraram com ele e sobreviveram!

Mas outro judeu, George Lusk, ficava cada vez mais irritado. Diziam na sinagoga que ele era dono de poderes mentais e espirituais acima da média. Mas ele só conseguia ver as trevas cobrindo as estreitas vielas, se espalhando com a neblina noturna. Agora sabia que tinha tomado a atitude certa. Se o assassino não parecia ser humano, só algo parecido podia pará-lo. A revelação de sua missão veio quando leu uma passagem do Talmud babilônico:

"Se desejassem corretamente, poderiam criar um mundo, porque está escrito: suas iniquidades são uma barreira entre você e D'us."

E Lusk tinha criado algo, naquela noite às margens do Tâmisa. A criatura que quiseram batizar de Shayne, que em yidish significava "linda". Ele, por sua vez, preferiu chamá-la de Samara, do hebraico "guardião". Mas não, depois achou um nome muito melhor para sua cria...

O inspetor Abberline estava perplexo com os dois crimes. Em vinte e cinco anos de polícia, ainda não tinha visto nada daquele tipo. Atualmente seria fácil identificar o assassino, mas naquela época não existiam técnicas como análise das impressões digitais ou de tipos sanguíneos. A única maneira seria pegar o criminoso em flagrante, ou caso alguma testemunha viesse depor contra. Mas aquele assassino não deixava rastros, ninguém o enxergava, era quase sobrenatural!

Annie Chapman tinha, sem saber, tuberculose. No dia 7 de setembro, plena sexta-feira, ela disse à sua amiga, Amelia, que precisava se mexer para ter dinheiro onde pernoitar, apesar de sentir-se doente. Conhecida nas redondezas como Dark Annie, ela era gorducha e também faltavam-lhe dentes alguns na boca. Não tinha um lar desde que o marido morrera, e com isso sofria de depressão e alcoolismo. Vendia flores e fazia costuras, além de se prostituir.

Perto das duas da manhã de sábado, Annie estava levemente bêbada e saiu do alojamento para conseguir algum dinheiro fácil, ou talvez o mais difícil de sua vida. Um pouco mais tarde, Elizabeth Long estava saindo do mercado quando ouviu o relógio da fábrica de cerveja Black Eagle bater cinco e meia da madrugada. Ela viu Annie conversando com um homem, na veneziana do nº 29. Mal sabia que tinha acabado de ver o assassino de Whitechapel, a cinco metros de onde fora encontrado o corpo da segunda vítima, Polly Nichols!

— Vamos ali atrás?

— O que vai me mostrar? - Annie estava mais bêbada ainda, pois com o dinheiro conseguiu pagar a pensão e ainda comprar uma garrafa.

— Algo que você nunca esquecerá.

Dark Annie também não gritou. Ele segurou o queixo dela e passou a lâmina. Enquanto cortava as entranhas da mulher, resmungava algo sobre metade das crianças de Whitechapel nem completarem cinco anos. Era um sinal, devia significar algo. "O mal deve ser arrancado pela raiz..."

O assassino terminou o ritual e então parou, ouvindo a própria noite. Foi quando percebeu que algo estava atrás dele. Correu como nunca, com a faca ensanguentada nas mãos, e agora sabia que estava sendo perseguido por algo além da polícia. Algo que não parecia ser desse mundo!

John Davis era um morador da pensão em Hambury Street. Foi ele quem encontrou o corpo de Annie às seis da manhã, também com o vestido erguido até a cintura. O abdômen estava aberto e os intestinos estavam perto dos ombros dela. A parte superior da vagina e dois terços da bexiga tinham sido totalmente removidos, levados pelo assassino. As incisões eram precisas, evitando o reto, e dividindo a vagina o suficiente para evitar danificar o colo do útero, demonstrando habilidade e conhecimento anatômico.

O assassino tinha cortado a garganta de Annie da esquerda para a direita, uma tentativa falha de decapitá-la. Não havia sinal de estrangulamento. Por ironia, o corpo é levado no mesmo caixão usado para transportar Polly Nichols. Naquele mesmo dia, a única testemunha ocular depõe; Elizabeth Long, que descreve o homem (apesar dele estar de costas para ela): "Ele era alto, em torno dos quarenta anos e usava um casaco preto. Parecia estrangeiro..."

As ruas antes transbordantes de Whitechapel agora estavam desertas à noite, e as pessoas raivosas com a falta de resultados da polícia, que tem poucas informações. As mulheres estavam sendo mortas pelo mesmo homem, e pela mesma lâmina. Tratava-se de uma faca de açougueiro ou então um instrumento cirúrgico muito afiado. Um pedaço de couro é encontrado perto do corpo de Annie Chapman, e um avental de couro é visto mergulhado num balde a alguns metros do corpo, e todos começam a falar novamente no judeu "Avental de couro". Todos esses eventos, somados com o depoimento de Elizabeth Long chamando o suspeito de estrangeiro, e todos na rua passaram a apontar para os imigrantes judeus.

Aquele pedaço de inferno vive então uma intolerante atmosfera anti-Semítica. Um grupo de comerciantes judeus percebem o risco que correm, e criam o comitê de vigilância de Mile End para fazer uma vigília ostensiva, patrulhando os arredores. O chefe do comitê era ninguém menos que George Akin Lusk. Esse comitê, formado por dezesseis homens de negócios, contava também com Samuel Montagu, que era membro do parlamento.

Foi ele quem deu vazão aos medos da comunidade primeiro:

— Ofereci uma gorda recompensa pela captura desse maldito assassino. Confesso que tenho medo da população achar que essa besta matadora seja um dos nossos.

— E você acha que não é? - perguntou alguém. - Por quê?

— Porque são boatos! Pura discriminação contra nossa raça, por nossa higiene e prosperidade! Apesar de estarmos na Inglaterra, nada mudou desde os pogrons do passado, em outras terras, quando católicos invadiam nossos guetos para nos saquear e promover matanças e banhos de sangue!

— Lembram-se da calúnia de sangue que atingiu os judeus em Praga? - pergunta Lusk - A igreja afirmava que bebíamos crianças cristãs durante o Sêder de Pessach. O cruel da situação era que os sacerdotes católicos enterravam crianças mortas em nossos jardins e com isso criavam os motivos para nos chacinar e confiscar as propriedades para a igreja.

— Tempos negros, mas nossa comunidade é forte contra os inimigos de Israel. Mesmo assim precisamos tomar providências, ou então seremos novamente alvos de pogrons como no passado, torno a dizer! - respondeu Montagu.

George Lusk baixou a cabeça por um minuto, e um silêncio se seguiu. Alguns pensavam no que dizer, quando ele ergueu o olhar:

— Eu já tomei providências...

Cabalista, Lusk era um permutador das letras e dos valores simbólicos dos números. Dominava a Temurah, combinando letras de uma palavra com outras para gerar efeitos místicos. Além disso, era um estudioso da Gematria feita com o alfabeto hebraico, grego e fenício. Ele continuou a falar:

— Diferente de você, sei que o assassino é um judeu. E antecipando a ameaça, criei um guardião. Lembra-se da mesma comunidade de Praga que citei, e da criatura do rabbi Yehudah Loew?

— Está se referindo à criatura dos delírios de Goethe, o golem? - perguntou Montagu.

— Não são meros delírios, e estou me referindo ao guardião citado no Talmud. Vários rabbis e mesmo o patriarca Avraham já o criaram antes de mim! - irritou-se Lusk.

— Besteira! Lendas, mesmo as judaicas, não vão nos salvar! - gritou alguém do comitê, mas que logo se calou, assim como Montagu, que ficou pálido. Uma mulher tinha entrado silenciosamente na sala, e parado entre os dezesseis homens.

Ela era maravilhosa. Tinha uma beleza que destoava das mulheres de seu tempo, todas acabadas pela miséria e prostituição. A pele quase parecia suave ao toque, mesmo com sua textura diferente da normal. Seus olhos eram perturbadores, pois não tinham brilho de inteligência, ela era servil. Uma mera escrava, uma guardiã, mas era possivelmente a mulher mais bela de toda a vizinhança.

— Ela se chama Laylie, nome hebraico que significa noturna, que pertence à noite ou à escuridão. - começou a explicar Lusk - Escolhi um corpo de mulher por razões óbvias. A missão desse corpo moldado em barro é atrair e parar o assassino de Whitechapel. Precisamos de paz para nossa comunidade sobreviver e prosperar.

— Não acha que esse corpo feminino tão bonito pode atrair um espírito imundo como Lilith? Maligna, ela poderia possuir esse invólucro que você moldou. Tem meios de destruí-lo?

— Laylie será destruída assim que cumprir sua missão. Do pó ao pó. - sentenciou Lusk, olhando fixamente para a criatura.

— Ela não fala, não se expressa? - quis saber Montagu.

— Apenas D'us pode conceder o dom da fala. Ela não tem uma alma humana. Eu apenas lhe dei nefesh, a respiração dos ossos, a força básica para animá-la.

Todos saíram maravilhados da reunião do comitê naquela noite. Pegariam o assassino usando seus próprios meios e não precisavam esperar a incompetência da polícia. Mas os judeus voltariam a ser notícia alguns dias depois. Em 11 de setembro, John Pizer, o famoso "Avental de couro" é preso, mas os boatos de que ele batia em putas nunca foram provados. Além disso, ele tinha álibis comprovados na noite dos assassinatos de Polly e Dark Annie. A faca de Pizer também não correspondia à arma utilizada nos crimes.

No dia 27 de setembro o mundo conheceria uma das grandes fraudes sobre esses misteriosos crimes, e também seria um dia raro: o assassino ganharia um nome, uma alcunha imortal que o mundo jamais esqueceria: na agência central de notícias, chega uma carta em tinta vermelha assinada por um tal... Jack, o estripador!

Endereçada ao "querido chefe", a carta ria dos esforços policiais e tratava o caso do "Avental de couro" como uma piada. Ameaçava continuar estripando putas até ser finalmente preso.

O clima de tensão e intolerância aumentava cada noite mais e mais, até que em 30 de setembro, Catherine "Kate" Eddowes sai de casa ao cair da noite para ir até sua filha, pois precisava de dinheiro emprestado. Como todas as outras mulheres vitimadas, ela também tinha problemas com álcool. E era apenas nessas horas, bêbada, que se prostituía, pois tinha um namorado chamado John Kelly:

— Não quero você andando por aí, Kate. Tem esse Jack solto pelas vielas, você precisa ter muito cuidado!

— Não tema por mim, querido. Sei me cuidar, não vou cair nas mãos dele. - foi a resposta.

Mas ela não chegou até a casa de sua filha. No caminho conseguiu dinheiro suficiente para se embebedar. Foi presa por isso, e acordou numa cela da polícia. Ficou detida até passar da meia-noite, quando perguntou se podia ir embora. O policial a liberou, e ela tomou a direção da deserta Mitre Square...

Nesse momento outra mulher ganhava uma rosa, não muito longe dali. Nunca tinha recebido uma flor na vida, nem em seus dias de juventude. E agora, com quarenta e cinco anos, sentia-se tão feliz e agradecida que faria qualquer coisa que aquele homem de preto mandasse, até mesmo seguí-lo para a escuridão. Cheirou a rosa, sem acreditar que ainda era alvo de galanteios.

A lâmina brilhou refletida em seus olhos nesse instante, e ela morreu enquanto caía. Laylie aparece ao longe como uma caçadora implacável, e o assassino, que já se preparava para estripar sua vítima, é obrigado a fugir:

"Aquele golem de novo! Maldita estátua, e maldito aquele que a animou do barro!" - ele pensava, enquanto corria. Secava sua faca no lenço da prostituta morta. Sua noite não podia terminar daquela maneira!

A criatura não tinha nenhum poder mágico, apenas a obstinação de caçar aquele monstro. Para sua tarefa não precisava comer, não sentia sede e nem cansaço. Achou a rosa desbotada caída na rua...

Por volta de 1:00 da madrugada, Louis Diemschutz, um judeu russo, tenta sair com o seu cavalo da cocheira, mas o animal se assusta. Diemschutz resolve acender um fósforo, e vê uma mulher caída no chão. Um filete de sangue escorria, então ele grita pela polícia. Um policial chega ao local, e constata que ela foi morta sem estrangulamento, e não há mutilações. Um longo corte na garganta que começava do lado esquerdo, partia a traqueia completamente em duas, e terminava no lado oposto. Parecia ser obra de Jack, mas seu ritual macabro parecia ter sido interrompido. A única pista dessa vez é o lenço do pescoço da mulher, que é encontrado perto do local, todo ensanguentado. A vítima, vestida de preto, é identificada como Elizabeth "Long Liz" Stride. Uma rosa adornava sua blusa.

Minutos antes, o assassino vira uma esquina correndo e tromba com uma bêbada: Kate. Ela caiu no chão, de onde não se levantaria mais.

— Olha por onde anda, seu idiota!

O homem de preto lhe oferece ajuda para levantar. Confiante, a mulher segura a mão dele, quando vê o brilho da lâmina. Nem teve como gritar. Foi arrastada até o canto.

— Isso é por me chamar de idiota, se bem que você não pode mais me ouvir. - resmungou, cortando as orelhas dela - Agora terminarei o que comecei. Putas servem apenas para umedecer as ruas desse inferno!

O assassino tinha conseguido despistar o golem, então teve tempo suficiente para mutilar sua vítima, e ainda plantou uma pista para confundir mais ainda a polícia. Ele não queria ser pego, pois tinha muito trabalho a fazer.

Laylie chegou poucos minutos atrasada. Quando viu o corpo da bêbada, sabia que o homem sumiria por uns tempos, pois estava saciado. Seria inútil prosseguir a caçada naquela noite. Quando percebeu os rastros meticulosamente arranjados por ele, ela não teve muito no que pensar. Pegou um pedaço de giz, apesar de não saber direito o que escreveria...

Mitre Square era parte da ronda do policial Edward Watkins, que tinha estado ali à 1:30, e agora passava novamente, britanicamente, quinze minutos depois. Tudo parecia calmo e deserto, mas quando ele acendeu sua lanterna e apontou para um dos cantos, descobriu um novo corpo numa poça de sangue!

Catherine Eddowes foi encontrada com a garganta cortada. Ela teve as orelhas decepadas, bem como a ponta do nariz. Um corte sobia desde o reto até a altura dos seios. O abdômen estava aberto, e o rim tinha sido retirado pela frente, e não pelo lado do corpo e, ainda assim, não tinha danificado nenhum órgão ao redor. Os intestinos estavam soltos, e parte do útero estava faltando, apesar do colo e da vagina estarem intactos.

O inspetor Abberline continuava perplexo, afinal o assassino tinha matado Kate Eddowes na Mitre Square, estripado a mulher silenciosamente e sumido em um espaço de apenas quinze minutos! Eram quase três da manhã quando um policial encontra um pedaço de avental ensanguentado jogado perto da entrada de um prédio na Goulston Street. E logo acima, escrito em letras brancas sobre tijolos pretos do arco da passagem, estavam as palavras:

"Os Judios são os Homens que não serão Culpados por nada."

O pedaço do avental veio da mulher mutilada em Mitre Square e a todos acreditaram que as palavras foram escritas pelo assassino. Quando viu aquilo, Sir Charles Warren, comissário da polícia metropolitana, foi curto e grosso:

— Apaguem isso! Uma frase dessas, exposta no arco de uma passagem pública, visível a todos sem poder ser coberta, é muito perigosa.

Foi uma ordem polêmica, e nem todos concordaram com ela, mas o comissário se manteve firme na decisão:

— Está mais do que óbvio que escreveram isso para afastar a polícia do verdadeiro criminoso, e também pensem nos judeus, pois isso é claramente um ataque à comunidade deles, muitas vidas poderão ser perdidas!

Ninguém percebeu que a frase estranhamente dizia "judios" ao invés de "judeus"; assim como até hoje ninguém sabe quem escreveu aquilo...

Duas testemunhas tinham visto "Long Liz" Stride, a primeira vítima da noite, minutos antes dela morrer. Ela não tinha nenhuma rosa na blusa quando saiu da pensão onde morava. Tanto o policial William Smith quanto um homem chamado Israel Schwartz falam sobre ela ter sido vista com um homem de cabelos e bigodes pretos, acima dos trinta anos, que trajava um casaco também preto. Jack tinha atacado novamente, e duas vezes na mesma noite!

No dia seguinte, um cartão postal apelidado de "Jack, o descarado", chega à agência central de notícias. Dizia que Liz Stride tinha gritado muito, então ele não pode estripá-la, uma meia-verdade, e também falava sobre as orelhas de Kate Eddowes. Assinado novamente pelo tal "Jack, o estripador", o exame de grafologia mostrou que esse postal fora escrito pela mesma pessoa da primeira carta. Mas essas duas correspondências eram apenas fraudes, criadas pela mídia para pressionar a justiça. Até um nome foi criado para o assassino, um golpe da imprensa.

Fraudes. Mas apareceu uma terceira carta, que realmente assustou a todos. Endereçada especialmente a George Lusk, ela continha um pedaço de rim humano. Vinda "do inferno", o autor dizia ter fritado e comido a outra parte do rim. Terminava com um desafio:

"Pegue-me se puder, mister Lusk."

Estava claro que era o verdadeiro assassino, rindo da ineficácia da criatura que obstinadamente o perseguia: o golem. O comitê de Mile End resolve levar a carta à polícia e ao inspetor Abberline.

— E então, senhores? - pergunta o inspetor.

— Bem - pediu a palavra o doutor Openshaw - esse rim pertenceu à alguém que sofria do mal de Bright. Foi a única pista que pude encontrar, Abberline.

O cirurgião da polícia, doutor Brown, também estava na mesa, com o inspetor e George Lusk. Ele ficou pálido como se de repente a afirmação "do inferno" ganhasse todo o sentido do mundo:

— Que Deus tenha piedade de nós... É verdadeiro! O rim é verdadeiro!

— Por que afirma isso? - perguntou Lusk, apesar de não estar surpreso como aqueles homens, pois sabia bem a verdade.

— Eu fiz a autópsia de Catherine Eddowes, e ela também sofre do mal de Bright. O rim dela foi retirado!

A imprensa chamou as mortes de Liz e Kate de "duplo evento". A ansiedade e o temor pioram, deixando as ruas praticamente desertas após o anoitecer. Putas só ficam o necessário nas ruas, preferindo procurar abrigo e ficar com parentes e amigos. O comércio cai, e forasteiros temem pisar em Whitechapel. Açougueiros e matadores são interrogados, assim como marinheiros aportados no rio Tâmisa.

O estripador está sumido, à espreita, esperando o momento certo de atacar. Ele passeia pela noite, desfrutando do pânico que criou, até que se depara com algo cômico, que ilustrava bem o desespero dos esforços em capturá-lo: um oficial estava disfarçado de prostituta, servindo de isca. Não havia mulheres na força policial na época, então coube ao infeliz esse disfarce tão ingrato.

O assassino sorri. Poucos minutos e metros o separavam do golem de George Lusk, pois a criatura também viu o policial travestido. Se tivesse inteligência suficiente para analisar, ela acharia a situação ridícula.

Pouco mais de um mês se passa. Aos poucos, as ruas começam a voltar ao normal, apesar das pessoas ainda não se sentirem totalmente seguras. Nenhum crime nesse período, parte disso devido à pesada vigilância que tanto a polícia quanto o comitê judeu de Mile End praticavam nas ruas. Mas o assassino batizado de Jack pela imprensa provaria que mesmo assim ele seria capaz de chocar a população novamente...

O aluguel de Mary Jane Kelly estava atrasado. Ela era uma irlandesa de vinte e quatro anos, uma beleza de olhos azuis que, ao contrário da maioria das mulheres dali, andava sempre limpinha e arrumada. Sedutora, todos na vizinhança gostavam dela, apesar de passar dos limites quando bebia. Era quase meia-noite quando Mary Cox, outra prostituta, passou por ela, que estava ajoelhada em frente a um homem em Miller's Court. O homem gemeu alto segurando os longos cabelos dela, que iam até a cintura, depois ajeitou as calças e foi embora.

Mary Kelly estava tão bêbada que mal conseguia falar. Mary Cox lhe deu uma pastilha para o hálito, e avisou, rindo:

— Não fique engolindo isso. Faz mal para os dentes, já viu essas putas velhas desdentadas que andam por aqui?

— Pretendo engolir mais até essa noite acabar. Preciso de dinheiro para o aluguel. Meu homem está desempregado. - ela cambaleou.

— Vá para casa, Mary Kelly, e durma. Acorde antes das cinco, que é a hora que os homens vão trabalhar no mercado. Lá você vai conseguir dinheiro fácil.

Mas a bela irlandesa não estava mais ouvindo. Tropeçando em si, mais tarde ela acabaria encontrando um amigo...

George Hutchinson gostava de ter sexo com Mary Kelly. Ela cobrava mais caro que as outras, mas quando estava bêbada transava até de graça. Por isso ele sempre rondava Miller´s Court como um fantasma, como naquela noite de sexta-feira. No fundo, era apaixonado pela jovem prostituta. Quantas vezes não tinha sentido o gosto de outro homem nos lábios dela, mas mesmo assim...

— Preciso de dinheiro. - ela falou, com sua voz sedutora. Eram quase duas da manhã, e ele não tinha nada nos bolsos.

Ficou assistindo impotente quando ela parou de lhe encarar com os olhos azuis, e voltou-se para um estrangeiro que passava. George não conseguiu ir embora, e ficou assistindo sua meretriz favorita tentando seduzir o homem que vestia um longo casaco negro, com uma jaqueta igualmente negra por baixo. Com suas golas e mangas enfeitadas, botas e polainas, ele tinha um ar respeitável. Meio pálido, olhos e sobrancelhas pretas, assim como seu bigodinho e cabelos. Tinha um jeito apressado, quase frenético e...

"Maldito judeu", pensou George, quando o desconhecido bem-vestido colocou a mão direita no ombro dela. O casal passou bem perto dele, que estava parado logo abaixo de uma lâmpada. O estrangeiro deixou o chapéu preto de feltro cair por sobre seus olhos nesse instante. Entraram na Dorset Street.

George, enciumado e ainda esperançoso de pegar sua irlandesa naquela madrugada, seguiu os dois. Eles pararam na esquina do pátio, quando o estranho falou algo como "estou cansado do meu trabalho".

— Claro querido. Venha, vai se sentir mais confortável. - ela o acalmou, e então se beijaram - Oh, perdi meu lenço!

O estranho tirou outro lenço vermelho do bolso e deu a ela. Entraram de vez no pátio, e George não pode mais seguí-los, nem espiar. Esperou por quase uma hora, talvez eles saíssem, mas não. Desistiu de esperar e foi embora. Não sabia, mas sua irlandesa nunca mais seria vista viva...

Talvez tenha sido o cheiro da morte, ou então por que ele se demorou em seu ritual de morte mais do que o normal, mas Laylie estava esperando quando ele fechou a porta atrás de si. Ela, tanto quanto seu mestre Lusk, queria que os crimes do estripador terminassem naquela noite.

— Você de novo? Olha o que tenho guardado, venha até aqui sentir também! - ele disse, mostrando sua faca, que ainda bebia o sangue de Mary Kelly.

Quando Laylie o atacou, ele confiou em sua lâmina e dessa vez não quis fugir. Mas, pela primeira vez, sentiu medo. Não sabia que ela era tão forte! Foi facilmente dominado e erguido no ar. Sua única chance era cortar a garganta dela, mas quando a lâmina fez o corte, não jorrou sangue como ele estava acostumado a ver. Saíram lascas de barro, e Laylie continuou firme.

Ela fechou os dedos em torno da garganta dele, estrangulando. Seus olhos sempre vazios e sem vida agora brilhavam com chamas de vingança. Ela o condenaria ao mesmo tormento que aquelas mulheres sofreram.

O estripador sentiu o ar faltar, e enquanto ainda podia raciocinar enfiou sua faca por todo o peito e pescoço do golem, mas eram golpes inúteis. Ele começou a se debater desesperado, sentindo que iria morrer, e o pior, morreria nas mãos de uma mulher! Sua faca caiu, sua última esperança.

Seus dedos procuravam debilmente pelo ar, já não aguentava mais, quando segurou a cabeça de sua executora. Procurava apertar os olhos, nariz e forçar a boca muda da criatura, algo sem alma assim como ele, que friamente tirava sua vida. Mas o destino parecia ter outros planos...

Na testa de Laylie estava escrita a poderosa palavra AEMAETH, a verdade. No auge do seu desespero, debatendo-se, o assassino acidentalmente apaga a primeira letra, o Aleph... Laylie para de apertar, seus dedos começam a se desmanchar em poeira. O assassino sabe exatamente o que está escrito na testa dela agora: MAETH, morte! Se ela não fosse servil, choraria sua própria destruição: uma criatura da magia feita de pó, e que ao pó fatalmente voltaria...

O assassino se liberta e cai pesadamente no chão, respirando com dificuldade e assustado. Talvez fosse melhor parar com os crimes, dar um descanso para sua lâmina vingadora da decência e moral. O comitê dos judeus quase tinha conseguido pegá-lo. O estripador guarda sua única arma de volta, tomando a decisão que, sem saber, o tornaria uma lenda misteriosa e sem rosto pelos anos e séculos vindouros. Sabia que se chamasse novamente a atenção da comunidade de Mister Lusk, seria implacavelmente perseguido e morto. Sobrevivera à primeira criatura, mas a sorte talvez não estivesse do seu lado numa segunda vez. Aos seus pés estavam os restos de Laylie, agora um monte de poeira e barro ressecado.

Montagu e Lusk chegariam meia-hora depois, apenas para recolher o que tinha sobrado do golem. Os dois judeus ficaram perdidos entre sentimentos de impotência e desilusão. A missão principal da criatura era pegar o responsável pelos crimes, antes que a culpa recaísse sobre toda a comunidade judaica. Mas o estripador sobrevivera ao encontro e ainda estava solto. Que D'us se apiedasse de Whitechapel!

Passavam das dez da manhã seguinte quando o cobrador de aluguéis bateu na porta da irlandesa. Silêncio, então ele espia pela janela. Vê um corpo, e o chão lavado de sangue. Minutos depois chega no local o oficial de polícia:

— Quando meus olhos se acostumaram com a luz fraca, eu vi a cena que nunca esquecerei até o dia de minha morte. - ele declararia depois.

Mary Jane Kelly estava morta na cama, deitada de bruços sem sinais de estrangulamento. Seus seios foram arrancados, o rosto estava irreconhecível, cheio de fraturas, com apenas os olhos azuis ainda intactos. O útero, um rim e um dos seios foram colocados perto de sua cabeça, que estava quase decepada. O outro seio estava nos pés, com o fígado. O intestino e o baço foram colocados ao lado do corpo, e o pior, o coração havia sumido.

Uma vizinha diz à polícia que viu George Hutchinson andando pela noite ali perto, e ele, quando interrogado, conta tudo o que tinha visto naquela madrugada, sobre como tinha seguido a vítima e o misterioso homem de preto. Ninguém percebeu uma lágrima solitária nos olhos de George. Após ouvir o relato, o inspetor Abberline se calou.

Ele se aposentaria e fecharia o caso do assassino que a imprensa batizou de "Jack, o estripador" quatro anos mais tarde. A lenda, porém, viveria para sempre!


1903. O assassino estava a caminho da forca, na aurora do século.

Seu antigo inimigo do passado, o aposentado inspetor, finalmente descobrira quem era aquele fantasma que se manteve sem nome por tanto tempo, e que agora assinava como George Chapman: solteiro na época, um condenado que podia circular nas ruas livremente de madrugada, que tinha um emprego fixo que o ocupava, mas o deixava livre nos finais de semana, quando tudo acontecia; violento, um homicida que assassinou várias mulheres, além de ser estrangeiro e ter habilidades médicas. Abberline preferiu não escrever aquelas conclusões em lugar algum, afinal já tinha abandonado a polícia mesmo...

O envenenador enfim estava na forca, na aurora do século. Quando passaram a corda em torno de seu pescoço, ele desejou que o peso de seu corpo deslocasse instantaneamente as vértebras cervicais, fraturando a parte superior da medula espinhal. MAETH.

Na verdade, Severin agora só tinha medo de uma coisa, que acabou se cumprindo: no momento final de sua morte, tudo o que ele enxergou foi o rosto de Laylie, a criatura de Whitechapel!


Comentários do autor

As pistas que apontam para Severin/George Chapman são impressionantes: quando ele chegou em Londres começou a série de crimes em Whitechapel que só parou quando ele partiu para a América, e recomeçaram de maneira similar por lá. O conto todo foi construído sobre o clima anti-semítico que pesquisei e descobri existir naquela época, e sobre o que teria feito Severin mudar de estilo.

Os crimes de Jack demonstravam seu ódio contra prostitutas e mulheres em geral. Jack não estuprava suas vítimas, mas ao invés disso as mutilava, mostrando toda sua ira e frustração sexual. O ato de enfiar a faca nos corpos das mulheres era seu substituto ao sexo (chamado de necrofilia regressiva).

"Corpos sem alma" foi publicado em 27.11.04, e revisado no dia de natal do mesmo ano.


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