Sistinas
De volta ao sangue
#39

De volta ao sangue

Diz a lenda que as transformações acontecem no limite de SETE em SETE, ou seja, sete em sete horas, sete em sete dias, sete em sete semanas, sete em sete meses, sete em sete anos...

1.adoção

— Tem certeza que quer o adotar? É uma criança muito especial.

— Imagino que seja mesmo, já que vocês o mantém aqui nessa ala escura da clínica. - disse a jovem senhora, com um trejeito de reprovação no canto da boca.

— Ele não fica à vontade quando a luz é muito forte. Esteve tanto tempo preso numa cela no porão que se acostumou com a escuridão.

— Mas ele sai de dia, não?

— O pessoal da clínica não sabe responder, mas é óbvio que ele prefere a noite.

— E o que houve com os pais?

— Até onde sei, a mãe morreu no parto. O pai era problemático e faleceu recentemente, com a mente perturbada e sofrendo de esquizofrenia e paranoia aguda. Os vizinhos perceberam o comportamento esquisito do homem e ele foi denunciado às autoridades.

— Apesar de se esconder ali no escuro, ele é lindo!

— Sim, é uma linda criança... porém precisa de muito cuidado.

— Olha moço, não posso engravidar e a adoção tem muita burocracia. Por isso eu e meu marido procuramos você. Só queremos um filhinho e ninguém precisa saber. Está sendo bem pago para isso, então... por que a preocupação?

Naquela noite o casal esteve tão feliz que após o jantar se recolheram e fizeram amor intensamente. O homem dormiu por cima dela, mas foi acordado em plena madrugada:

— Amor, está ouvindo esse som? Parece chupada...

— Querida, volte a dormir. Te chupei tanto hoje que é até pecado você estar falando disso...

— Ouça! Nunca ouvi nada tão obsceno. Nosso menino está acordado?

— Você agora é a mãe, lembra?

Contrariada, a mulher levantou-se da cama vestindo o roupão e dirigiu-se ao quarto que tinham construído para o filho que nunca puderam ter. Assim que abriu a porta, suas pernas amoleceram e ela gritou. Uma criatura estava na cama por cima do menino, chupando num ritmo violento, preciso e implacável!


2.a cela

— Esse cara só pode ser um vampiro! A denúncia tava certa!

— Tá vendo isso aqui? Bolsa de sangue. Por isso as manchas em toda a casa. - concluiu o oficial de polícia.

— Ilumine aqui. De quem foi a ideia de invadirem à noite?

— O vizinho que ligou na delegacia disse que ele some durante o dia...

— Tem alguma coisa aqui embaixo! É uma cela!

— Meu Deus, olhem para isso, é uma criança!

— Tirem essa máscara dele!

— Não tô conseguindo... Que pai é esse que parafusa uma máscara de ferro e imobiliza a boca do próprio filho?

— Um pai louco, por isso que o vizinho dedurou o cara!

— Pode falar comigo? Onde está seu pai?

— Atrás... do senhor.

— Santo Deus, atirem, atirem! Ele tá ali!

Com os nervos à flor da pele devido ao cenário, os policiais abriram fogo. Os estampidos das armas iluminaram o pequeno quarto.

— Parem! Não, não atirem, ele é só um homem!

— Tarde demais, tenente. Ele tá mais furado que peneira.

— Tava reclamando de sangue, oficial? Agora tem mais, e é do... Raymond. Aqui os documentos. Tem mais coisa aqui no bolso, fora a carteira.

— O que é?

— Alho e... um crucifixo velho.


3.o vizinho

— Eu faço o sinal da cruz praticamente toda vez que vejo esse homem, esse tal Raymond. É meu vizinho. É nesse número que faço denúncia anônima, liguei certo?

— Ligou sim senhor, pode nos passar o endereço do seu vizinho?

— Ele tem um cachorro com seis olhos. É fácil saber, todo mundo tem medo dele!

— Perdão, senhor... espero que não seja um trote. Nossos policiais já estão na rua e...

— Ele anda com bolsas de sangue, eu já vi! O banco de sangue não tem reclamado de roubos não?

— Por favor, senhor... poderia me passar o endereço?

— Qual, o meu? Não, eu tenho medo desse homem. Se ele descobre que liguei pra polícia...

— Senhor, a denúncia é anônima. Não se preocupe...

— … ele com certeza vai soltar aquele cão dos infernos pra me matar!


4.Raymond

Ray passava com cuidado a tinta na cara do Ogar, desenhando mais um par branco de olhos no cachorro. Segundo as crenças antigas, isso afastava os vampiros. A criatura demorou sete anos para se fortalecer e escapar do túmulo. Raymond agradeceu ao bom Deus por dar a ela um enterro romeno, com todos os rituais. Isso a atrasou, com certeza. Agora ele precisava proteger seu filho. Desde a colocação da máscara que já sabia que a criança - se fosse atacada e morta - voltaria do inferno, e sabe-se lá para quê.

Esfregou alho no pelo do cão. Alho também era uma boa defesa. Magia das boas, cura doenças e protege contra o mal, coisa que só camponês acredita. Ray acreditava agora, mas antes precisou pagar para ver, e sua descrença quase lhe custou caro demais.

Sabia que os vizinhos o observavam e até mesmo apontavam para ele na rua. Seria um lunático, aos olhos deles? Aos olhos do mundo, tão ocidental e dominado pela razão?

A razão não explicava as coisas que Ray tinha visto, então a razão não se aplicava. Por isso era normal subornar o segurança do hemocentro mais próximo e pegar bolsas de sangue para saciar o apetite peculiar de seu filho. Antes disso, o menino já não comia nada, apenas bebia o sangue que vertia da carne crua que era jogada em sua cela.

Sim, tinha trancado seu próprio filho numa cela. Não sabia exatamente o que o garoto era agora, então não podia arriscar ser mordido por ele.


5.o menino

O quarto do menino estava mergulhado em penumbra. Estranho, pois quando alguém de dentro de sua casa morre, você não apaga mais a luz antes de dormir. O homem pensava assim, e seu filho estava na cama, assustado. Paralisado de medo, o que é normal quando se é atacado.

Tinha respingos de sangue até a janela, por onde aquilo desapareceu. Raymond seguiu a trilha irregular da morte e respirou fundo olhando lá fora, tentando enxergar na escuridão. Nada, nem mesmo o vulto vestido em seda, que enxergou de relance quando entrou no quarto. A sorte é que resolveu ver como seu filho estava dormindo, assim que percebeu que seu cão não tinha latido nenhuma vez naquela noite.

— Tô sentindo um frio por dentro, pai. Muito frio. - o menino tremia furiosamente.

Frio foi o que Raymond sentiu dentro de si - nas veias, enregelando seu coração - quando lembrou da máscara que tinha comprado tempos atrás. Deixou o filho sozinho, indo buscá-la.

— Pai? Que é isso?

Sem responder aos protestos e gritos, Ray parafusou e depois, indiferente, soldou aquela placa de metal que recobria a mandíbula da criança. Sua pequenina boca agora aparecia apenas por um grotesco orifício escavado na máscara. O homem então começou a pensar em como alimentar seu filho.

— Eu vô morrê? - o menino choramingou.

— Não, filho, claro que não. - ele dizia isso segurando o pescocinho da criança, vítima de uma terrível mordida na jugular. Sete longos anos haviam se passado desde a última vez que Raymond respondeu uma pergunta dessas...


6.a mãe

— Eu vou morrer?

— Não querida, claro que não vai. - mas isso era mentira. O médico infelizmente não tinha dado boas notícias.

— Me prometa que vai cuidar bem dele, Raymond? Meu filhinho...

— Sua vez de prometer uma coisa, Catrina: você vai me ajudar a cuidar dele? - Ray fez aquilo para ver se animava a mulher, que desde a maldita noite do ataque definhava mais e mais.

— Sim, sempre. Onde eu estiver. - ela respondeu, com uma certeza mórbida no olhar. E ainda disparou:

— Eu sei que você foi infiel comigo, Raymond.

Ray levantou a cabeça, mas diante daquele olhar nem teve reação. Baixou-se novamente, e deu um suspiro resignado.

— Não consigo te perdoar, nem entender. - o tom de voz dela era tão baixo e compassivo que o irritou.

— Não vamos pensar nisso agora, Catrina.

— Não sei se vou sobreviver ao parto, então quero pensar nisso agora.

— Ok, então, e como soube?

— A criatura me contou, enquanto fazia aquilo comigo...

— Bom Deus... - ele deixou escapar por entre os lábios. "Como seria a voz daquilo?"

— Acha que gostei de ter aquele monstro em minha cama?

Diante do silêncio de Ray, ela continuou:

— E o pior... pensar que não me protegeu daquilo por estar com outra!

Horas mais tarde, Raymond roía as unhas. Estava sozinho na ante-sala da maternidade, já que a bisavó de Catrina tinha falecido na mesma noite do ataque do monstro... a velha 'deochetoare' e sua má sorte, que lhe avisou antes de morrer que a 'strigoiaca' era ainda mais perigosa que o macho, já que destruía casamentos e também chupava o sangue de crianças à noite.

— É um lindo menino, senhor. Mas infelizmente, como já era esperado, sua esposa não conseguiu, ela...

— Morreu. Posso vê-lo, doutor?

Raymond queria apenas se certificar de que a ingestão desesperada que aplicou em Catrina tinha salvo a criança. Não podia permitir que a natureza de seu filho fosse maculada por criaturas da Transylvania. Passou a língua pelos lábios, como que sentindo o gosto daquela noite maldita tempos atrás...


7.ingestão

A Transylvania não é um lugar imaginário como a maioria pensa. Ele existe e é um vilarejo da Romênia. Sei disso, pois a família da minha adorável esposa é de lá. Catrina está grávida do meu primeiro filho, depois de tantas tentativas frustradas. Sua velha bisavó - que, aliás, viveu mais que a avó e a mãe - me disse uma enigmática frase na ocasião em que soube da notícia:

— Fique atento quando esse menino nascer. Cuidado com o 'strigoi' e o 'pricolici'. Essas coisas atacam crianças.

— Essas coisas não existem aqui, bisa.

— Uma criança romena sempre deve temer essas coisas. Mesmo não estando em solo romeno.

Não era a primeira vez que a velha falava sobre "essas coisas" com aquela entonação sobrenatural... Falava deles com respeito. Respeito que eu não conseguia ter, já que não acreditava nas mesmas crendices dos camponeses simplórios e atrasados da Romênia.

— Não me olhe com esse olhar descrente, meu jovem. É muita pretensão nossa pensar que um ser deixa de existir completamente quando seu corpo é declarado morto pela ciência. Mas não vou falar mais nada, para que não me tome por uma 'deochetoare', caso algo dê errado em sua família...

Alguns meses se passaram e meu filho, minha alegria, estava prometido para nascer. Só que certa noite antes do nascimento, eu trabalhei até mais tarde. Confesso que Catrina, grávida como estava, já não era tão atraente assim aos meus olhos. Eu a amava - imagine, ela carregava minha semente! - mas não sentia atração sexual. Procurei outra mulher que me fez muito feliz por algumas horas. Chegando em casa tarde da noite, deparei-me com a rua mais escura que o normal, além de um silêncio onde podia ouvir minha própria respiração bêbada e nervosa.

Assim que abri a porta, antes de acender a luz, uma mão esquelética agarrou meu colarinho. Meio tonto como estava, acabei caindo pesadamente no chão da entrada. Era a velha, com uma expressão de terror inominável nos olhos, toda machucada como se tivesse apanhado:

— É fácil... saber quando ele chega... com os stafie... nenhum cão ladra nas vizinhanças!

— Ele quem, bisa?

— Ele... está lá em cima... com sua esposa! Salve seu filho!

Levantei-me tão rápido que nem sei como consegui, deixando a velha caída junto à porta. No instante seguinte eu já chegava na escada, pensando em alguma justiça divino-poética que estava me punindo por ser infiel com minha esposa. E eu nem sabia QUEM era lá em cima!

Então ouvi um urro, quase gutural. De prazer, deleite. De vitória.

As pessoas ainda perguntam se os vampiros transam, algo um tanto óbvio. É o que eles mais fazem, profanando continuamente os leitos das pessoas de bem. Esse aqui estava em minha cama, cavalgando minha esposa. Segurava afastados os tornozelos de Catrina no ar enquanto retirava seu membro duro de dentro dela, respingando fluídos adúlteros em meus lençóis brancos. O urro. Ele tinha gozado, sabe Deus quantas vezes, inundando Catrina.

"Salve seu filho!"

Percebi que na hora do medo todos nós nos tornamos camponeses, simplórios e atrasados. Crentes. Toda e qualquer superstição fica aceitável! Eu agarrei firme meu crucifixo, tanto que posso jurar que ele resplandeceu entre meus dedos. A criatura afastou-se imediatamente, caindo da cama numa velocidade impressionante. Parecia dissolver enquanto se afastava em direção à janela. Uma de suas unhas brilhou na luz do luar, e imaginei que ele poderia me abrir com elas, caso tivesse essa chance.

De sua boca vazava sangue, mas ele não falava nada. Apenas me olhava intensamente, tentando diminuir minha fé, algo do tipo. Queria me mostrar que o inferno existe, talvez, mas eu não dei chance a ele. Fui me aproximando lentamente, e então Catrina gemeu. Corri um olhar preocupado para ela, o suficiente para a criatura desaparecer como névoa que se dissipa.

Só consegui olhar para Catrina novamente após ouvir um latido lá fora. Antes disso permaneci fixo na janela, olhando para o nada que se tornou o maldito vampiro. Minha mulher ainda estava desacordada, mas gemendo em delírio. Suada, permanecia de pernas afastadas, obscenamente. Seu pescoço sangrava, assim como os mamilos.

Eu sabia que, em algumas culturas mais atrasadas, grandes quantidades de homens transavam em público com uma única mulher, e que ao final desse verdadeiro espetáculo sexual o último deles se abaixa e sugava todo o esperma grupal depositado naquela vagina. Mesmo entre os monogâmicos mais antigos, essa ingestão de sêmen era um recurso para se evitar uma gravidez indesejada.

Mesmo diante do bizarro da situação, eu não tive dúvidas. Ajoelhei-me lentamente entre as coxas de Catrina, afastando os grandes lábios intumescidos de minha mulher, rijos e avermelhados de tanto sangue, puro fruto da excitação gerada durante a transa. Abri também os pequenos lábios, já encostando minha boca. Penetrei seu sexo com a língua primeiro, sentindo o gosto agridoce da mistura de fluidos entre minha Catrina e aquele maldito. Meus lábios então encaixaram-se perfeitamente nos vaginais dela, e comecei a sugar...


Comentários do autor

"De volta ao sangue" foi escrito em 13.03.06 e originalmente publicado na edição 15 impressa da Scarium Megazine - Especial de Vampiros.


Espalhe a palavra