Oh! Tu que irradias solidões noturnas, Deus do Disco Lunar, vê!
-trecho do segundo capítulo do Livro dos Mortos
Eu também te acompanho entre os habitantes do céu que te rodeiam.
Eu, morto, Osíris, penetro à minha vontade ora na região dos mortos,
ora na dos vivos sobre a Terra, em todas as partes às quais meu desejo me conduz!"
#22
Kaineferu
Egito, 2575 a.C.
A primeira das grandes pirâmides estava quase pronta, a obra que escreveria para sempre o nome do faraó Khufu - Quéops em grego - na história. Numa das últimas noites de seu reinado de vinte e três anos de opressão sobre o povo egípcio, uma grande festa estava acontecendo.
Adom, um dos mais poderosos sacerdotes da época, estava com o olhar fixo em sua amante predileta, Mahaila, como os hebreus chamavam sua dançarina, um presente do faraó por sua lealdade e serviços prestados, elevando o nome da tirania.
Ela era perfeita. Dançava apenas quando sabia que ele estava presente. Carregava consigo a sensualidade máxima que uma mulher poderia herdar dos deuses e, ao mesmo tempo, um semblante quase infantil. Os persas a chamariam de Mahliqa, "anjo", e era tão ou mais bonita que Nyla, uma das mais formosas princesas do poderoso Egito.
Pão, vinho e cerveja em fartura circulavam. Ali estavam o vizir, o chanceler, sacerdotes, escribas e outras personalidades da classe dominante. Adom segurava o impulso de possuí-la ali mesmo, entre os convivas. Um dos homens pediu a palavra, e ele se aproveitou desse pequeno intervalo para sumir por entre as sombras do salão, indo atrás de sua linda dançarina.
Entrou num dos aposentos do opulento palácio real, e lá estava ela: Kaineferu. Seminua, já o esperava de pernas afastadas.
— O faraó é o superintendente de todas as coisas proporcionadas pelo céu e produzidas pela terra! - bradou alguém no salão, no mesmo momento em que Adom beijava sua amante e apalpava seus seios pequenos e duros, como os de uma adolescente.
— Não fiz mal à nenhuma filha de homem pobre, não oprimi nenhuma viúva, nem expulsei nenhum pastor. Apenas uns parcos homens miseráveis durante meu governo, mas nada que impeça a glória de meu nome ostentada pela obra que se aproxima! - disse alto o faraó, e Adom ouviu. Segurou um riso cínico, enquanto penetrava a carne úmida e quente de Kaineferu. Ela o enlaçou com as pernas, forçando-o a entrar mais e mais...
A noite se passou, quente e suada, assim como o resto daquele ano. A grande pirâmide foi enfim concluída, a primeira de três de sua dinastia. Ao fim de seu reinado, Quéops já estava enlouquecido pelo poder absoluto que todo faraó possuía na época, e quis tomar para si o presente que dera anos antes à Adom: a preciosa Kaineferu.
Como fora rejeitado por ela, pediu ao seu melhor escriba que redigisse ao sacerdote uma carta de saudação maravilhosa: "Que você prospere, que você viva, que eu o veja novamente em segurança e o aperte contra meu peito..." - o resto do conteúdo da carta deixava claro sua obsessão pela dançarina - "desejo essa mulher que dança para o Deus, desejo mais do que a todas as riquezas do alto e do baixo Egito."
Porém, Adom se recusou a ceder sua deliciosa amante para Quéops.
O faraó pensou em matá-lo, mas era muito devoto, e preferiu não o desafiar abertamente. Como seu próprio nome invocava, Adom era "aquele protegido pelos deuses". Então Quéops decidiu quem deveria morrer. Para tal tarefa designou duas irmãs gêmeas, Safiya e Tahirah, ambas puras e castas, alegando que Kaineferu era uma mera concubina e que merecia o fim pelas mãos de uma virgem, para evitar assim uma maldição. Como todos eram tementes aos vários deuses, foi uma tarefa fácil convencê-las do assassinato. E assim foi feito.
Numa época em que os faraós e até as pessoas mais comuns eram mumificadas, os conhecimentos da anatomia humana eram muito avançados. Adom era versado nessas habilidades, que alegava ter aprendido em sonhos com o próprio Anupu, o guardião das necrópoles, que os egípcios acreditavam estar sempre presente nas mumificações.
Deitada morta em um catre de madeira na ibu-en-wab, "tenda da purificação", Kaineferu parecia triste por ter partido antes de seu amado. A tenda era ao ar livre, na margem oeste do Nilo, e durante a noite, movido por um inexplicável senso de perigo, o sacerdote foi ver como estava o cadáver e quase morreu de raiva. Um homem - levado pela beleza da dançarina morta - resolveu violar o cadáver. Amarrou-a grotescamente na mesa de madeira, enquanto a penetrava. Furioso, Adom matou o necrófago ali mesmo e jogou o corpo maldito no rio.
Em doloroso silêncio, o sacerdote armou-se de muito sangue-frio e, com a cabeça enfaixada em linho branco para demonstrar sua perda, começou a preparar sua amada Kaineferu para ser mumificada. Levou o corpo para a wabet, "casa da purificação", e então deu início aos procedimentos mortuários, dando-lhe um banho aromático.
Derramava lágrimas enquanto injetava no crânio dela uma mistura líquida de ervas. Isso derretia a massa cerebral. Com a ajuda de um ferro curvo, retirou pelas narinas o resto. Assoprou forte o ouvido para tirar os sucos cranianos que também escorreram pelo nariz. Enquanto fazia isso, lembrava das milhares de vezes que sussurrou ali juras de amor eterno. Pôs dois rolos de pano encharcados com óleo perfumado para tampar as narinas.
Pegou uma pedra cortante vinda da Etiópia e fez um corte profundo no abdome. Ela quase parecia que se ergueria da morte, e o mataria por violar daquela maneira seu corpo perfeito. Por meio desse corte retirou os órgãos macios. Guardou os intestinos num vaso com cabeça de falcão, em homenagem à Selket. O estômago foi colocado em um vaso com tampa em forma de chacal, e oferecido à deusa Neith, e o fígado ele guardou no "imset" - o vaso canópico com tampa em forma de cabeça humana, que era da deusa Ísis.
Somente o coração era preservado no corpo, para que pudesse ser pesado e julgado durante a Psicostasia, o tribunal da deusa Maat. Se fosse declarada pecadora, Kaineferu teria seu coração comido por Ammit, o devorador dos mortos.
Por último retirou os pulmões e guardou no vaso com cabeça de babuíno, que indicava que era consagrado à deusa Nephtys. Lavou então o tórax com vinho de palmeira e secou. Com muito esforço emocional, retirou os olhos dela usando os dedões. Em vida, ela tinha sido apelidada também de Najla - "a que tem olhos maravilhosos" - por um estrangeiro que a viu dançando.
Enfim salgou o corpo, e o cobriu com natrão, o verdadeiro segredo da mumificação. O bom senso e sua experiência diziam que devia esperar assim pelo menos setenta dias, mas não teve paciência. Quarenta luas depois, Adom lavava cuidadosamente o corpo de sua amada. Agora ele usava uma máscara de cão, que representava Anúbis.
De sua Kaineferu só restava a pele, ossos e carnes endurecidas pelo processo. Nem de longe lembrava a dançarina sensual, macia e hipnotizante de outrora. Tampou com cera seus ouvidos e passou esmalte nos olhos. Encheu o ventre aberto com mirra moída, e também canela, além outras plantas e essências.
Começou a enfaixar sua múmia pelos dedos, um a um, e só então depois os membros, a cabeça, quando deu um demorado beijo de despedida. Por fim, esticou os braços dela ao longo do corpo com os antebraços cruzados no peito. Ali depositou o escaravelho do coração e vários outros amuletos entre as ataduras que envolviam sua amada, onde estavam escritas as fórmulas mágicas que lhe permitiriam renascer.
— Sim. - gritou, com ódio - Você voltará para mim numa época de luxúria e perdição. Voltará, em nome de Keket, a deusa das trevas, e Nekhbet, a deusa abutre, para uma dolorosa vingança! Me acordará das areias do Egito e juntos comandaremos uma nova era!
Dito isso, colocou a máscara de lápis-lazúli em seu rosto angelical, e cerrou o sarcófago, enterrando Kaineferu para quase todo o sempre numa mastaba próxima à pirâmide de Quéops...
Sistinas, 2003 d.C.
Carl era o curador e egiptólogo do Museu Mundial de Sistinas. Ali, sob seus cuidados, estavam obras de arte vindas dos quatro cantos do mundo. Naquele momento, nada que estava exposto ali era mais importante que a fantástica coleção do Egito, que tinha passado por várias cidades antes de chegar às suas mãos. Era inexplicável a sensação de olhar tão de perto objetos esquecidos há quase cinco mil anos!
Seu interesse era tamanho que já passava da meia-noite e ele não queria ir embora. Mas seus planos para a madrugada mudariam drasticamente quando enxergou sua namorada parada na porta do salão principal. Estava examinando um ankh genuíno quando ela chegou.
— E pensar que carregava um desses no pescoço quando adolescente. Agora que tenho um verdadeiro e egípcio nas mãos me sinto tão... idiota. - ele começou, sem graça, pois tinha esquecido que naquela noite comemorariam aniversário de namoro.
— É mesmo. Idiota também sou eu, de ficar em casa te esperando. Imaginei que estivesse aqui. São dois anos, sabia? - desabafou Verônica.
Carl secou o suor da testa. Seus olhos brilhavam de interesse pelos artefatos egípcios. Como egiptólogo, aquele era o sentido de sua vida. Mas Verônica - apesar de chateada com o esquecimento dele - estava ali para tudo, menos para brigar. Largou no chão uma mochila misteriosa e o abraçou. Quando Carl a beijou, percebeu que estava nua por baixo do sobretudo que vestia.
— Que isso? Passou pelos guardas assim?
— Relaxa amor. Eu quero comemorar, sabia? Isso aqui dá uma bela fantasia sexual. Trepar num salão cheio de objetos egípcios! Acha mesmo que eu não sabia que você estaria aqui babando? Só falou disso nos últimos dias. Então, pensei numa surpresinha, e tem tudo a ver com o tema!
Carl sorriu, empolgado:
— Que legal, amor. Gosto muito de ver quando você, pelo menos por um instante, se interessa pelo meu trabalho. Sabia que a palavra múmia não é egípcia? É do persa "mummiah", algo como "betume", uma antiga substância a que se atribuíam poderes curativos.
Verônica baixou a cabeça, e sorriu. Se não fosse apaixonada por ele...
— Acredita que os corpos eram retirados das tumbas, cortados em pedaços, embalados, e vendidos como medicamento? Acreditavam na época que uma múmia curava um monte de doenças! Mas o fato é: em egípcio antigo, um corpo preservado e envolvido em linho era chamado "wi". E a mumificação em si era chamada de "wet" - enfaixar.
— É mesmo? E "sexo", é uma palavra de qual língua? - provocou a mulher.
— É uma palavra universal, querida.
— E como ficaria em egípcio a expressão: "Quero chupar você"?
— Mmmmmmmm deixe-me ver, não consigo me lembrar!
— Até você ficar bem duro. Que tal?
O curador não aguentou mais a provocação. Dane-se que os vigias passavam por ali. Virou sua namorada de costas, e ergueu o sobretudo dela, expondo o bumbum macio que ele tanto gostava. Ela apoiou-se num sarcófago, o mesmo no qual Carl trabalhava. Empinou-se, ficando na ponta do salto alto que usava, e ele a penetrou.
— Você fica com um ar de vagabunda quando usa esse salto alto, sabia?
Meteu com força ritmada, e os dois - talvez por algum senso de urgência - gozaram logo. Apenas uma rapidinha, apesar da intensidade. Tão forte as estocadas, que a tampa do sarcófago entreabriu. Ambos queriam mais, e ela ainda tinha algumas surpresas guardadas para aquela noite.
— O que tem aí? - ele perguntou, quando Verônica pegou a mochila.
— Você verá, sou uma mulher que pensa em tudo! - e então sacou um rolo de filme plástico.
— Pra que serve isso, querida?
— Não quer saber como seria mumificar uma gostosa como eu?
Carl sorriu, sem acreditar no que via e ouvia. Em alguns minutos, loucura total, mas lá estava Verônica deitada no chão do salão, o corpo levemente arrepiado, exposto, só esperando que ele a envolvesse nas apertadas faixas plásticas. Excitado e nervoso, Carl amarrou seus pulsos, deixando os braços dela à frente do corpo. De vez em quando aproveitava e dava uma boa chupada nos mamilos rijos dela.
Verônica estava feliz, além de ensopada de tesão. Sentiu desconforto quando ele começou a embrulhar descendo, desde os ombros, os seios, a barriga, passou pelo quadril, as coxas e parou de enrolar somente nos tornozelos, deixando-a apertada, totalmente imobilizada e entregue. Sorriu, mas quando olhou para cima, se assustou.
Estavam bem em frente ao sarcófago, agora totalmente aberto, e a múmia parecia olhar para ela.
— Se essa porra se mexer, juro que tenho um treco, Carl!
O homem deu uma gargalhada, mas parou de repente. Parecia que a criatura estava ouvindo tudo. Olhou desconfiado para a máscara fúnebre por algum tempo, e então continuou a embrulhar sua namorada. Agora enfaixava a cabeça dela, que foi obrigada a fechar os olhos com a pressão do plástico.
— Deixe minha boca livre, amor. Além de claustrofobia, eu também tenho problemas respiratórios, você sabe...
-Deixarei sim, claro. Vou querer brincar com sua boquinha. - respondeu Carl, se divertindo com a situação.
Ele enfaixou completamente até abaixo do queixo dela, e então com os dedos perfurou e rasgou o plástico na altura da boca. Sem muito o que poder fazer, ela abocanhou o dedo dele, e chupou demoradamente.
— Hmmm, a minha múmia safada!
De olhos fechados, Verônica sentiu quando seu homem passou o membro duro e ainda meio molhado em seus lábios. Sentia o cheiro de seu sexo no dele, e gostava da sensação. Amava tanto seu homem que se permitia essas pequenas safadezas para agradá-lo. Ele usava o pau para bater no seu rosto, e por vezes dava também alguns tapas. Ela só gemia e pedia mais e mais. Era o auge do tesão.
Mas depois de alguns minutos, a imobilização ficou cansativa, e ela estava toda suada e dolorida. Seus lábios já estavam mesmo cansados com o vai e vem de Carl. Quando escutou ele dizer que iria rasgar um buraco num lugar estratégico, sentiu um certo alívio. Estava cheia daquela estranha mistura de bondagismo com mumificação.
Aguardava ansiosa enquanto ele rasgava e cavava as camadas de plástico entre suas coxas, enquanto lhe dava tapas no rosto. Carl sabia bater nela, aqueles que mais excitavam do que doíam. Estava inegavelmente úmida, mas queria se livrar logo daquela prisão. Estranhamente lembrou-se da múmia acima dela, e então escutou um barulho alto.
— Que foi isso, Carl?
— Nossa, a máscara da dela caiu. Você não imagina como ela é FEIA!
Achou que ele disse aquilo querendo assustá-la. Claro, era isso. O medo desencadeia sensações incontroláveis, além de orgasmos mais poderosos. Então um segundo barulho ainda mais alto a deixou assustada de verdade.
— Carl...? CARL!
Uma gota com gosto de sangue pingou nos lábios dela, que tentou se mexer, em pânico. Não conseguia, de jeito nenhum! E Carl não respondia!
— SOCORROOOOOOO! - entrou em desespero, e então mijou-se toda de medo quando escutou algo inumano falando.
Verônica não teve chance de gritar outra vez. A múmia enterrou a maciça máscara bem no meio de sua testa, com tanta força que esmigalhou a cabeça. O apertado filme plástico manteve o sangue e cérebro no devido lugar, antes de começar a vazar.
Carl voltou a si momentos depois. Ouvia uma voz ao longe, gutural, lenta e cheia de raiva:
— Transaram "em mim"... trouxeram esse corpo... de volta. O tempo que Adom previu chegou.
Não acreditou no que estava presenciando: a múmia estava agachada, tirando com esforço os olhos de Verônica. - "Meus, você não os está usando agora." - ela resmungava. Ele viu que os dois vigilantes noturnos estavam mortos também. Provavelmente ouviram os gritos e vieram ajudar, mas...
— Vai me matar também?
A múmia voltou a cabeça, devagar. Tirou algumas bandagens do rosto, e colocou os olhos de Verônica no lugar de suas órbitas vazias, e falou:
— Não. Preciso de você. Tem que fazer o que quero.
— Fala minha língua? Estou entendendo tudo que me diz. - não queria demonstrar, mas estava morto de medo.
— Não, e nem você fala meu glorioso verbo. É o poder dos deuses que ouvimos. Você está falando sua língua, e eu a minha própria.
— Por que só eu estou vivo? - tinha medo da resposta, mas precisava perguntar.
— Preciso de você. Os olhos são dela. Quero mais, preciso. Não tenho meus canopos sagrados, preciso de tecido, matéria de Hórus. Esses não servem, são homens... Nem você serve!
Carl então entendeu. Ela precisava de órgãos femininos, pois perdera os seus... Pobre Verônica, morta, com uma poça de sangue no lugar da cabeça. Que fazer? Ela era uma múmia, algo antigo que retornava, como não admirá-la como uma... deusa?
— Arranje corpos para mim. - ela ordenou e ele nem fez esforço para negar.
— Estou com problemas. Três pessoas morreram aqui, e só eu sobrevivi. Como explicarei isso à polícia?
— Não se preocupe. Eu te protejo se aceitar ser meu servo nesses dias estranhos.
— Eu tenho alguma escolha?
— Sim, uma opção mais imediata e definitiva. Se não aceitar a mão que lhe estendo, morrerá também. - respondeu a múmia.
— E como devo chamá-la? - temeu por sua vida.
— Sou Kaineferu, nascida no poderoso império egípcio, e agora ressuscitada como Osíris. Eu, que fui recusada por Anúbis, o deus-chacal dos mortos, agora devo assombrar o mundo dos vivos. Devo retornar às areias do Egito para erguer da morte meu amado Ini-Herit, aquele que traz de volta o que está distante. Essa foi a condição e esse é o sentido de meu despertar.
— Desculpe te desapontar, mas seu amado, seja lá quem ele for, não está mais nas areias do Egito. Assim como você, tudo o que se refere às pirâmides de Quéops está exposto aqui. Ou então chegará na próxima semana.
Kaineferu olhou raivosa para ele, que tratou de continuar falando:
— Me chamo Carl, e estou a seu dispor, Kaineferu. - disse, humildemente. Não estava louco, pois sabia exatamente o que estava fazendo. Dobrava-se diante de um poder antigo e desconhecido.
— Carl? - ela zombou, e o nome soou estranho nos lábios podres - Quem no mundo se chamaria "Carl"? Vou batizá-lo de Hasani, "bonito", por sua aparência agradável, enquanto me for fiel.
— Acho que posso conviver com isso. Mas, e quanto aos meus problemas com a polícia? Como uma múmia pode me ajudar?
— Múmia? Por que me chama assim? O que é uma "múmia"? Acaso não lhe disse meu nome? Guarde-o bem, pois quem sabe o nome de um ser sempre tem poderes sobre a alma deste. Quanto aos seus problemas, demonstrarei que comigo estará seguro. Vamos para sua habitação, não gosto desse lugar, e detesto meu sarcófago, que me cerrou por tantas noites...
Carl agradeceu por ser alta madrugada, senão, como sairia à rua acompanhado de uma múmia em decomposição? Meio incrédulo ainda, sentiu que sua vida nunca mais seria a mesma. Teve certeza disso quando deu a última olhada para a cabeça ensanguentada de Verônica.
A última gota de ceticismo dele sumiu quando chegaram em seu apartamento. Assim que tentou passar pelos portões para estacionar na garagem, foi bloqueado. Desceu e foi conversar com o vigia, repetiu por várias vezes seu nome, que não constava na lista, nem a placa de seu veículo. E o porteiro - com quem Carl conversava sobre política e futebol desde que chegou para morar ali, cinco anos atrás - não o reconhecia:
— Na verdade, senhor, está perdendo seu tempo. Nunca ouvi falar de você. Vá embora por favor, e não volte.
Quando entrou no carro, perdido e incrédulo, viu o sorriso nos lábios da múmia, que estava deitada numa posição esquisita no banco traseiro. "O que você fez, Kaineferu?"
— Ah, meu bom Hasani. Viu que seus problemas terminaram? Eu tenho o poder de apagar da história pessoas e nomes. Nem seus pais o reconheceriam, mesmo que você estivesse diante deles. Quem está comigo, Kaineferu, aquela que ressuscitou das areias do tempo, não sofre os efeitos do curso da história.
— Não acredito? Você me transformou num... fantasma?
— Não. Você ainda vive. Apenas foi apagado das linhas do tempo. A milícia de sua era, "polícia" como você os nomeia, não poderá nunca mais te descobrir. É impossível.
Carl usou nesse momento toda sua frieza para não cair em desespero. Imagine-se sendo apagado da mente de todos seus amigos, conhecidos e parentes? Agradeceu a Deus por não ter filhos com Verônica, pois não aguentaria. Mesmo assim, chorou.
— A maldição que o faraó desencadeou ao mandar me matar respinga agora em você, séculos depois. - ela disse, sombria, e então ficou em silêncio pelo resto daquela noite, com os braços cruzados por sobre os seios ressecados. Resignado, Carl só pôde dirigir até a casa de sua falecida namorada, da qual tinha a chave.
— Goza logo, me chama de puta e me enche de porra!
Mas Carl não conseguia gozar. A mulher que estava de quatro na sua cama agora era uma prostituta que ele tinha contratado especialmente para poder extrair os órgãos, tão preciosos para a regeneração de Kaineferu.
— Vai meu macho. Você tá pagando, não quer gozar, não tá gostoso?
Nesse instante a múmia saiu das sombras do quarto, e a atacou. Surpresa, ela nem teve como se defender, e foi literalmente rasgada pelas mãos de Kaineferu.
Carl tentava disfarçar o próprio medo. A mulher foi jogada na cama, ao seu lado, e Kaineferu deitou-se sobre o corpo. Ouviu um barulho muito desagradável, enquanto o fígado, intestino e o estômago dela saíam, fundindo-se nas carnes da múmia. Ele não sabia se amava ou odiava aquela criatura, que gemia de olhos fechados. A coisa toda parecia até um ato sexual.
Em questão de minutos, a pele e carne da múmia voltaram à vida, e uma bonita e sensual dançarina se levantou da cama. As bandagens caíram, deixando Carl de boca aberta. Era linda, perfeita em todos os detalhes, e tinha uma tonalidade de pele que nunca tinha visto, além de não ter mancha alguma. Se já a respeitava como uma deusa, agora então é que cederia totalmente aos seus encantos.
— Eu preciso de mais, Hasani.
— Quantas? - ele perguntou, sem vacilar. Nunca tinha visto uma mulher tão...
— Uma. Mas tem que ser pura, tenho pendências muito antigas com esse tipo de hipócrita.
Carl "Hasani" sorriu, e começou a pensar em como atrair uma virgem. Protegido pelo poder secular da múmia, não temia a polícia nem nada. Sabia que nunca mais seria preso, pois simplesmente tinha deixado de existir. Não tinha nome, nem residência, e nem passado. Seu pior lado aflorou então. Não quis mais se conformar em apenas servir à Kaineferu, queria aquela mulher apenas para si.
"Dane-se Adom. Agora entendo o motivo do faraó ter enlouquecido de desejo. Se depender de mim, esse sacerdote nunca se levantará da morte!"
Alheia aos pensamentos traidores de seu servo, Kaineferu andava nua pelo quarto, pensando dia e noite em como alcançar seu amado e senhor. Teve um estranho pressentimento, até pelo fato de nunca tê-lo encontrado no mundo espiritual. Sabia também que o Egito dos dias de hoje não era mais o poderoso império de outrora, e que os arqueólogos já tinham retirado tudo das proximidades das pirâmides. Uma prova era ela mesma, que estava ali, no museu de Sistinas.
— O sarcófago de meu amado chegará semana que vem? Eu devo despertá-lo, e ele renascerá como Khaldun, "o imortal", e voltaremos à nossa terra.
Carl não respondeu. Teve medo só de pensar que poderia despertar a múmia de um poderoso sacerdote egípcio. Quais males ele traria consigo?
— Vamos arranjar sua virgem nesse meio-tempo, Kaineferu. - desconversou.
O tempo passava, implacável, e Carl se desesperava na procura por uma virgem. Pensou em enganar Kaineferu, pagando uma prostituta que tivesse aparência jovem e se vestisse como adolescente. Não foi difícil achar uma que enfim topasse sua "fantasia".
— Lembre-se, tenho uma amiga estrangeira em casa, e ela deve acreditar que você é virgem.
— Sexo a três eu cobro mais caro. Mas é serviço completo, sabe? Tipo... se ela quiser usar algum acessório em mim.
— Eu pago. Mas o mais importante é ela acreditar que você é virgem.
— Tudo bem, aqui é o cliente quem manda.
Ele tramou esse plano sabendo que Kaineferu só precisava dos pulmões, os únicos órgãos que ainda lhe faltavam. Sem eles, nem mesmo sua poderosa beleza disfarçava o aspecto esquisito em que se encontrava. Se eram apenas os pulmões, por que diabos precisavam ser de uma virgem? Achou mesmo que a sorte estava do seu lado, porque a prostituta que contratara nem fumante era!
Quando estacionaram em frente a casa da falecida Verônica, a prostituta estranhou a escuridão do lugar:
— Onde está sua tal amiga estrangeira? Não está em casa?
— Ah, ela é um pouco tímida. - ele respondeu, e a convidou a entrar. Antes disso repassou seu teatrinho com ela: "Lembre-se, estamos sozinhos e você quer perder sua virgindade comigo. Está ansiosa pra fazer sexo pela primeira vez, ok?"
— Ok, mas vocês estão me assustando. Quem é que ficaria trancada numa casa dessas, na escuridão total?
Ele ignorou a observação dela e, quando entraram, acendeu a luz forte da sala. Percebeu nesse instante as muitas rugas e tantas outras linhas de expressão no rosto da mulher. Nunca que ela enganaria Kaineferu.
A prostituta sentou-se no sofá, e pôs-se a ajeitar o tênis allstar sujo, mostrando estar bastante desacostumada com as roupas que fora obrigada a usar. Mais falso que todo aquele esforço dela em parecer adolescente foi a frase mecânica que soltou em seguida:
— Sabe, é a primeira vez que vou fazer... bem, você sabe.
— Tire-a daqui Hasani, ou mato vocês dois por tentarem me iludir dessa maneira. - Kaineferu sussurrou do lado ainda escuro da casa.
— Que som horrível foi esse, você escutou?
— Não fale assim da voz dela. Acho melhor você ir embora... agora. - respondeu Carl, suando frio. Ainda bem que ninguém mais entendia a linguagem da múmia.
— Ei, devagar queridinho. Você ainda me deve a grana.
— Por favor, você precisa sair daqui... agora. - a frase dele foi pontuada por outros sons guturais que vieram novamente da escuridão.
— Está me ameaçando? Eu quero meu dinheiro, seu safado!
— Escuta, foi um mal entendido. Não transamos, então não lhe devo nada. Agora, por favor, saia!
A prostituta estendeu a mão aberta em forma de cobrança, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa enxergou o vulto saindo das sombras e vindo em sua direção, falando naquele terrível idioma gutural. Era uma mulher nua, ligeiramente corcunda, com peitos secos, murchos. Ela correu para a porta destrancada, fugindo daquela aparição medonha. Quando chegou na esquina totalmente sem fôlego, já não conseguia mais se lembrar por que estava correndo.
— Não ouse tentar me enganar novamente, Hasani.
— Perdoe-me. Como só falta o canopo de Nephtys, não achei necessário tirar esses órgãos de uma virgem.
— Ainda não entendeu que, como renascida, preciso de sacrifícios? E que tudo o que quero agora é uma virgem sacrificada? Em meu tempo, homens matavam pelo privilégio de me possuir. Isso ainda não deve mudar. Ou você não me deseja, Hasani?
Carl percebeu o quanto ela precisava dele. Mas o jogo de palavras dela era sedutor, e tudo o que ele queria naquele momento era possuí-la. Enlouquecido, pensou rapidamente num plano para matar uma adolescente virgem. Só precisaria de um lenço encharcado de clorofórmio.
Na tarde seguinte, ele pagou um sorvete para Camile, uma menina de pouco mais de dezessete anos e com rebeldia suficiente para ignorar os avisos dos pais e entrar no carro de um estranho. Os dois estavam excitados com a situação, e começaram um amasso desesperado. Ele a beijava e explorava, apertando os seios juvenis e duros por cima da blusinha. Ela apenas correspondia às investidas dele, até que ele alcançou a calcinha:
— Calma tio. Ainda sou virgem.
— Mmmm é mesmo? Relaxe, não vamos fazer nada que você não queira. - afastou as mãos dela para acalmá-la, e enquanto a beijava calorosamente, alcançou primeiro o lenço que levava no bolso. Depois pegou disfarçadamente um pequeno vidrinho e o destampou ao mesmo tempo em que puxava o lábio inferior dela entre os seus.
A adolescente, em sua inexperiência, fechava os olhos com força cada vez que a língua áspera dele brigava com a dela. Ele aproveitava esses instantes e despejava mais do frasco de narcótico no lenço. Quando o mesmo já estava encharcado - antes que ela percebesse o cheiro no ar - ele tapou sua boca com o lenço e a sufocou.
Deitou a menina desacordada no banco e a levou para sua casa. Minutos depois carregou a menina despreocupadamente do banco do carro até depositá-la na cama. Não teve medo algum de ser visto pelos vizinhos, pois sabia que a maldição de Kaineferu cobria seus rastros como um manto. Caso alguém visse aquela cena suspeita, esqueceria dela um minuto depois.
Tirou toda a roupa da adolescente, demorando-se em retirar a calcinha pelas pernas, ainda jovens demais para conhecerem uma depilação cuidadosa. Afastou as coxas, revelando a vagina desprotegida, ainda com poucos e ralos pelos pubianos. Dedilhou a menina, fascinado com a sensação. Seu dedo encontrou muita resistência no hímen, que estava intacto.
— Sim, ainda é virgem, que gracinha. - ele falou, em voz alta e clara; a senha para Kaineferu adentrar o quarto. Ela deitou-se por cima da menina, abriu-lhe o peito, e os pulmões de Camile começaram a descolar, grotescamente.
Carl só pensava se Camile tinha morrido sem sofrer nem sentir dor, enquanto assistia o corpo da jovem ressecar. A regeneração da múmia estava, enfim, completada.
Ela olhou para seu servo fiel com um convite no olhar. De costas para ele, apenas acariciou lentamente o bico do seio esquerdo. Sentia-se completa agora.
— Me faça sentir plena e viva novamente, meu servo.
Hasani se livrou das roupas e aproximou-se da cama, puxou a renascida pela cintura e a penetrou, enterrando-se cada vez mais e mais nas carnes úmidas de Kaineferu. Alternava as estocadas ora a puxando pelos cabelos, ora pela cintura, forçando todo o encaixe dos sexos.
— Homens matavam e se desgraçavam apenas para ter o prazer de se deitar comigo. Mesmo agora, séculos depois da era de Rá e dos faraós, ainda sou desejada. - ela gemia, rebolando mais e mais, por cima do cadáver seco de Camile.
O resto da exposição do antigo Egito chegou enfim ao Museu. Carl e a renascida tiveram que esperar pela madrugada, quando invadiram o lugar. Como trabalhou durante anos ali, sabia exatamente onde estavam os furos na segurança. Mas os dois nem imaginavam que uma desagradável surpresa os aguardava.
— Será que meu amado está aqui? Tenho medo de não o encontrar, Hasani.
Carl torcia para que não tivessem encontrado o sarcófago de Adom. Isso significaria que ela seria dele pelo resto da vida, e isso era exatamente o que queria. Suas preces foram mesmo atendidas, pois no salão principal, decorado totalmente com motivos egípcios, estava apenas um sarcófago: o que pertencera à Quéops, o faraó.
— Maldito seja! Veja meu servo, esse é a origem de todo o mal. - Kaineferu apontava, raivosa - Pela loucura dele eu fui morta e não pude viver meu grande amor.
— Tire suas mãos profanas daí, renascida.
Só nesse momento que Carl e sua múmia perceberam que não estavam sozinhos. Duas mulheres vestidas de branco, com olhares ameaçadores e sem pupilas, estavam na entrada do salão.
— Malditas! Vamos Hasani, não fique aí parado! Essas são inimigas de sua mestra, portanto, suas inimigas também!
Carl ficou paralisado. Afinal, quem eram aquelas duas? "Safiya e Tahirah, as executoras. As virgens que a mando de Khufu me mataram!" - gritou Kaineferu, esperando que seu servo reagisse.
— Acabou Kaineferu. Nosso tempo passou. Você é última de nossa estirpe que desperta. Nós duas renascemos por sua causa, pois o faraó assim nos ordenou ainda em vida. Aqui morrerá para sempre dessa vez dançarina. Seu sacerdote não pode mais interferir. - disse calmamente Safiya, a mais alta das inimigas.
— Onde está meu amado Adom?
— Quéops lhe negou a mumificação. Seu corpo definhou, apodreceu e virou pó há milênios.
Kaineferu não se conformou. Gritou tão alto que tirou Carl de sua letargia. Ele tentou atacar Tahirah, mas a mulher o jogou longe. Eram muito poderosas! Sua mestra então pulou, caindo por cima de Safiya, lutando com todas suas forças. A maldição do faraó era mais poderosa nessas gêmeas, mas a dançarina estava obcecada e com raiva.
Apesar dos corpos renascidos serem mágicos, as três ainda eram em essência muito humanas, de certa maneira, "carnais". A cada golpe as mulheres despedaçavam e morriam um pouco. Carl assistia impotente, procurando por algo com que atacar as gêmeas. Não permitiria que sua deusa morresse, agora que sabia que Adom nunca voltaria do mundo dos mortos.
Kaineferu enfiou os dedos nos olhos de Safiya e a mataria, se Tahirah não fosse mais rápida que o vento.
— Deixem Kaineferu em paz, vivendo nessa era comigo. Não interfiram! - gritou Carl, desesperado, pois as duas cercaram sua mestra. Foi Tahirah quem o respondeu, sombriamente:
— Creio que essa decisão não esteja mais em nossas mãos, estrangeiro.
Carl não entendeu a princípio, até ver quando algo negro, alto, forte e definitivamente feroz entrou no salão. Tinha o corpo disforme, monstruoso, e a cabeça era de um chacal, com as orelhas pontudas em pé. O focinho alongado farejava em direção às mulheres. Seus olhos vermelhos não eram desse mundo, assim como o objeto que ele trazia nas mãos. Um punhal.
Kaineferu foi imobilizada por Safiya e Tahirah, segura pelos pulsos. A figura negra então deu um grito horrível, abrindo sua boca canídea enorme, e foi como se os portões do inferno se abrissem. Ele se aproximou e com um golpe ceifador abriu o ventre da múmia dançarina. Todos os tecidos que ela roubara caíram para o chão, magicamente, como se nunca tivessem estado ali dentro. O corpo dela perdeu a firmeza, tornando-se um saco vazio e disforme.
— Hasani, me ajude! - gritou suas últimas palavras, se decompondo lentamente.
Carl, tirando força e coragem do desespero, pulou nos ombros do chacal. Levou um soco atordoante e caiu, tonto, aos pés do sarcófago do faraó. Assistiu dessa maneira a segunda e definitiva morte de Kaineferu, a linda dançarina que um dia ousou desafiar o senhor do Egito. Os restos do corpo dela ainda rodopiavam suspensos no ar num negrume poeirento, enquanto as renascidas Tahirah e Safiya dirigiam a palavra ao sarcófago:
— Nossa tarefa foi cumprida, ó todo-poderoso faraó, senhor do Egito e dono de nossos corpos. Voltaremos agora ao pó, uma vez que Anupu nos chama para o descanso eterno.
O deus-chacal então rasgou as renascidas Safiya e Tahirah com o mesmo punhal, que era capaz de fender o próprio tempo, e as gêmeas também foram consumidas pela espiral de areia negra. Em segundos gritaram, gemeram, desaparecendo em meio ao pó nesse momento, consumidas da mesma maneira que a condenada Kaineferu.
Carl se encolheu, com medo e ainda dolorido pelo golpe da fera que agora lhe dava as costas, voltando para o glorioso Egito pelas areias do tempo. O homem olhou de relance para cima nesse último momento, mas viu apenas a máscara de lápis-lazúli que representava as severas feições do faraó Quéops.
Ele parecia sorrir.
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"Kaineferu" foi publicado originalmente em 24.01.03. Reescrito em 2012 para o relançamento do site.