Sistinas
Loco Miroir - Parte 2
#31

Loco Miroir - Parte 2

Valerie acompanhou o bokor pela noite até a residência de uma mambo, sacerdotisa, ou seja, uma mulher sagrada para eles. Claro, isso não era surpresa nenhuma: nomes como Sanité Dedé, Marie Saloppé e a rainha branca Madame Auguste, passando pela imortal Marie Laveau (na verdade imortalizada por sua filha Marie Laveau II) contavam que o vodu era regido por mulheres. A vampira ficou um pouco desconfortável com isso; era sempre melhor tratar com homens. Ela os seduzia, e mesmo quando isso não era percebido, os resultados costumavam ser favoráveis.

Não que sua sedução não funcionasse com mulheres.

Valerie não gostava de estereótipos, mas pensou que encontraria uma negra velha com lenço nos cabelos e olhar cansado, com ar de quem tinha acabado de destroncar uma galinha. Nada diferente do que já tinha visto em "Santerias" pela cidade afora. Mas o cheiro de velas pretas e vermelhas não veio.

A mulher que entrou na sala era forte, bonita e incrivelmente jovem. Os olhos mais doces que ela tinha visto, e um corpo realmente invejável, malhado por uma vida inteira dançando a "banda" nas cerimônias de vodu.

— Ela é Mandjula, a poderosa sacerdotisa dos vodunistas de Sistinas. - Foi assim que o bokor apresentou a linda negra à Valerie.

Apesar do título pomposo dela, ele anunciou com o tom de voz de quem tinha visto aquela menina nascer, e, ao mesmo tempo, ainda não tinha se acostumado com a dela ter crescido tanto.

— É nossa mambo, e Erzulie mora em sua cabeça.

A mulher abriu pela primeira vez a boca de lábios carnudos, e sua voz também era doce:

— Seja bem-vinda, se for amiga.

Valerie assentiu que sim, e lhe devolveu o melhor dos olhares. Então o bokor falou algo com Mandjula, achando que com seu dialeto cajun (uma espécie de francês fruto da colonização no Haiti) enganaria a branquela vampira, sem saber que ela era francesa de nascimento. Falou sobre negros estarem capturando a Klan, alertou sobre o que Valerie era (ela sorriu quando ouviu a palavra Loogaroo) e saiu apressado, deixando as duas mulheres sozinhas.

— Em que posso ajudá-la? - perguntou Mandjula, apesar de seus olhos mostrarem outra curiosidade.

— Espero que me ajude com a Klan. Eles queimaram vivo um amigo meu, na noite retrasada.

— O que ele era seu? Seu amante?

Valerie ia respondendo rapidamente que era seu empregado - o mais eficiente guarda-costas, mesmo para uma vampira que não precisa disso normalmente - mas achou melhor não dizer dessa maneira, talvez não conseguisse ajuda se o chamasse de serviçal. Precisava achar outra maneira de dizer aquilo...

— Ou era um empregado seu, ou escravo? - Mandjula continuou, adivinhando partes do pensamento da vampira.

— Eu confiaria minha vida nas mãos dele. Era, acima de tudo, um grande amigo. Por quê?

— Estranho uma branquela vir até aqui falar sobre a morte de um negro. - aquele olhar de curiosidade dela continuava - Só pude imaginar que fosse um empregado importante, ou um escravo, você sabe... sexual. - ela terminou a frase com um risinho, típico de sua pouca idade.

A vampira não sorriu de volta. Analisava a sala agora, viu no canto um altar improvisado circundado por quatro pedras, onde um lenço branco se abria. Valerie sentiu que ele cheirava à urina misturada com algum perfume forte. Uma taça cristalina emitia o aroma de rum, que destoava no meio do perfume das flores que a adornavam. As joias deixadas ali indicavam que aquela mambo servia algum loa feminino.

Numa mesa próxima, viu bonecos de vodu à venda por $30. Eles estavam todos lá: Mama Bridgitte, Marie Laveau, Mojo, Barão Samedi, Papa Legba, Obatala, Miss Scarlett, todos eles, as proteções ancestrais do vodu, os loas. E nesse momento Mandjula resolveu saciar sua curiosidade:

— Você é mesmo uma... sabe? Uma loogaroo? - antes que Val respondesse, ela continuou falando, empolgada - Nossas origens africanas chamam sua raça de Asiman, mas sempre pensei que fossem bruxas velhas, com aspecto doente. Mas você... você é linda. Sua pele... - ela estendeu a mão e tocou a fria vampira.

— Minha pele não descola, nem me transformo em bola de luz alguma. Não importa o nome que vocês dão à minha raça. Sobre a velhice, posso dizer que pensei o mesmo sobre sacerdotisas de vodu...

— Não deve ser tão poderosa, pois não pediria ajuda, se fosse. - desdenhou Mandjula, e Valerie não soube dizer se aquela criança era arrogante ou inocente mesmo.

— A Klan é uma ameaça para vocês, mas não diz nada a mim. - retrucou a vampira, seca - Eu quero vingança contra eles, tanto quanto vocês querem, mas também contra um antigo inimigo, que provavelmente está por trás de tudo isso.

Mandjula pensou por um tempo, e depois falou calmamente "Traga-me um porco."

Quando viu a expressão de Valerie, ela meio que sorriu, e explicou:

— Não posso invocar diretamente as forças malignas que cuidarão de seu inimigo. Apenas posso fazê-lo se você me pedir, contratar-me para isso, e o pagamento é um porco. Esse animal será sacrificado.

A vampira concordou com o preço, mas Mandjula tinha mais uma exigência:

— Também quero um fio de seu cabelo. Faz parte do trato e do ritual, e não confio em brancos.

O olhar frio da vampira enquanto lhe dava o fio negro e comprido fez com que a mambo se afastasse, como se de repente percebesse a criatura com quem conversava. Depois disfarçou e sorriu com os dentes perfeitos, claros.

— Então nos ajudaremos, moça branca. A Klan é nossa, não se preocupe com ela. Erzulie é a deusa do amor, ciúme e também da vingança!


Em algum lugar de Sistinas, Sra. Tyler acordou de boca seca. Levantou-se, deixando o motorista roncando na cama. Seu marido estava viajando, e ela mantinha seu leito aquecido. Pegou uma jarra d´água na geladeira, serviu-se, mas quando fechou a porta, tomou um susto que a fez derramar tudo no chão. Não tinha acendido a luz, e três pares de olhos amarelados a observavam na escuridão!

Antes mesmo de conseguir gritar, viu uma daquelas sombras sorrir, e saltar pra cima dela. Apesar dos dentes muito brancos e do efeito que suas roupas escuras causavam, Sra. Tyler percebeu que eram bem humanos. A loura caiu, e os três homens a imobilizaram. Antes que colocassem a mordaça, ela tentou negociar:

— É um sequestro? Tenho dinheiro, posso pag...- então fecharam sua boca.

— Sabe a diferença entre sequestro e rapto, sua puta? Rapto acontece quando tem intenção sexual envolvida... - um deles falou, já abrindo a calça. Estava excitado, e esfregou seu saco negro no rosto dela, que se contorcia de terror e nojo. Algemaram Sra. Tyler e a estupraram lentamente por pouco mais de uma hora; ela não sabia se era pior ser inundada de porra daquela raça que odiava, ou ter seu rosto lavado com aquilo.

— Essa não vai sentar por um bom tempo. - disse um deles, num momento tão tenso que ela quase arrancou a própria mordaça de tanto gritar de dor. Após saciados, foram ao quarto e mataram o motorista dela asfixiado, usando o travesseiro. Por fim a levaram num carro velho e ela nunca mais viu sua casa...

A Sra. Tyler resistiu bem quando espetaram agulhas embaixo de suas unhas bem cuidadas. Uma vida de fantasias depravadas e sadomasoquismo fizeram dela uma mulher resistente à dor; mas não aguentou e cantou os nomes dos membros importantes da Klan quando encostaram ferro quente em seus mamilos. Os negros então saíram, em plena madrugada, à caça de suas presas. O Grande Dragão foi o mais patético: o velho banqueiro foi flagrado dando o rabo para um dos Ciclopes, fantasiado de nazista.


Quando anoiteceu outra vez, um sábado, Valerie estava em um peristilo, algo como um templo religioso que os vodunistas mantinham. Um terreiro. Sentada ali, podia divisar as homenagens que os adeptos prestavam aos loas, como a cruz de Barão Samedi. Algumas dessas homenagens a vampira ignorava, pois não conhecia as divindades. O chão era de terra batida, e ela ficou surpresa de ainda existir um lugar daqueles, encravado numa metrópole como Sistinas.

De vez em quando acompanhava com seus atentos olhos verdes um vodunista entrar nas pequenas "djevo" adjacentes; salinhas onde todos guardavam seus objetos cerimoniais, chocalhos, potes de barro e outros. A superstição dizia que os bokor sabiam fazer amuletos terríveis chamados wanga, usando ervas venenosas e raízes - como a mandrágora - com terra de cemitério. Valerie não acreditava que aqueles fetiches pudessem realmente animar um cadáver, e ela entendia muito de corpos mortos.

O bokor que tinha procurado estava ali. Às vezes ele olhava para ela segurando aquela sua bengala entre as pernas, e a balançava de maneira obscena. Valerie, pelo jeito, ainda ouviria muito a expressão "vagina branquela" até o final do ritual. Sabia que todos os loas Ghede - os espíritos mais comuns do vodu, filhos de Barão Samedi e Maman Brigitte - tinham linguajar extremamente vulgar quando se apossavam da boca dos sacerdotes... afinal, eles estavam mortos mesmo!

Então, num certo momento, homens e mulheres vestidos de um branco quase ofuscante entraram no peristilo. Tambores com peles feitas de couro de vaca e cabra começaram as batidas ritmadas, e Valerie quase pode jurar que eram hipnóticas. Durante o tempo todo aquele mesmo som, produzido por baquetas. A coisa parecia muito religiosa, e a julgar pela distância mantida por Mandjula e o bokor (soube que se chamava Joseph), a vampira percebeu que ainda não era chegada a hora da magia negra, o lado maligno do vodu que tanto causa medo ao mundo.

Nada de estranho aconteceu naquela primeira parte do ritual. Os espíritos ancestrais, os verdadeiros deuses africanos daquela religião foram reverenciados, como a serpente do arco-íris e o deus-cobra da fertilidade. E, num cesto, uma gigantesca cobra saiu e lambeu com sua língua bifurcada o rosto de Mandjula, dando-lhe o poder de ver além da realidade, de se transformar em planta ou bicho, e outros poderes mágicos. Valerie sentiu-se totalmente deslocada, sem nem ao menos saber o que fazer, como se comportar, e, por um único instante, imaginou como seria se alguma divindade tentasse dominar seu corpo...

De repente o bokor Joseph reaparece, vestido em seu traje de gala violeta e negro, e um desfile macabro de possessões começa a varrer todo o local. Até mesmo a vampira se assusta quando um rapaz ao seu lado cai no chão e se levanta narrando com a voz alterada como era lindo abrir as pernas de uma negra e achar uma vagina rosada de cheiro forte. Era a hora da família Ghede, e atrás da vampira a enorme cruz do Barão Samedi foi erguida e reverenciada. Joseph ora contava piadas, ora fazia algum comentário grosseiro sobre os lábios das mulheres presentes. E, algumas vezes, seus olhos vermelhos queimavam e ele dava sábios conselhos para a comunidade. E, naquele momento, exatamente a metade das pessoas presentes estava possuída por algum loa Ghede. As mulheres dançavam alegremente a banda, algumas de maneira sensual, outras nem tanto, mas o fato era que todas sorriam com bocas que não mais lhes pertenciam. Uma visão perturbadora para qualquer cético.

Valerie soube então que mais uma parte do ritual tinha acabado quando o rapaz ao seu lado voltou a sentar-se, timidamente, como se nada tivesse acontecido. Tinha saliva seca nos cantos de seus lábios, e o olhar esquisito de quem perdeu o controle da própria vida. Ela estava observando esses detalhes quando os negros deixaram, ajoelhados no meio daquele terreno, uma mulher muito loura e outros dois homens: um deles já era meio grisalho, e a vampira soube, assim que deitou os olhos nele, que tinha sido esse o homem que acendera a fogueira de Spot...

Os tambores agora eram batidos com as palmas das mãos. Nada de baquetas, nada de ritmo hipnótico. Os trajes agora eram vermelhos; os sons, mais rápidos e excitantes. A própria noite pareceu mais escura quando aquela beldade negra reapareceu: Mandjula. Tinha sido incorporada por Erzulie, "Je Rouge". Parecia mais alta e mais poderosa que nunca. Os efeitos de sua beleza combinados com sua posição de sorcière eram devastadores, ela agora tinha o comando sobre cada pessoa presente ali.

Alguns vodunistas cercaram a mambo Mandjula e ela abriu o vestido que usava. Valerie quis chegar mais perto para ver o que acontecia, mas sabia que não podia, então manteve uma distância respeitosa. Apenas viu que eles entalhavam algo na carne da sacerdotisa, algo muito parecido com um coração estilizado. Depois esfregaram ervas secas nesses cortes, e a vampira entendeu que aquilo era uma espécie de proteção, um selo.

— Um garde. - disse o rapaz que não saía do lado de Valerie. Tinha lido a curiosidade no olhar daquela dona branca.

— Para que serve?

— Ela agora é propriedade de um Djab. - ele respondeu, e a pronúncia saiu como "diable". - Esse garde serve tanto para declarar isso, como também para protegê-la.

A vampira sorriu levemente. As coisas começavam a ficar interessantes. Os três membros da Klan já suavam frio, assustados com o som dos tambores e tentando imaginar o que aconteceria a eles. Pela noite ecoavam gritos e canções para estranhos nomes como Cimitiere, Carrefour e outros loas. Quando o rito homenageou Erzulie, Mandjula reapareceu dançando enlouquecida. Os olhos doces tinham sumido. Agora era o olhar de uma negra velha, que tinha sentido o cheiro de vômito nos navios negreiros, que tinha sido estuprada e perseguida durante a escravidão. Era um olhar triste e, ao mesmo tempo, sábio.

Ela bebia uma garrafa de rum misturado com pimenta haitiana, diretamente no gargalo. O cheiro daquilo queimou as narinas da vampira, mesmo à distância. Só uma possuída podia beber aquilo, de tão quente e forte. Nesse estado ela desistiu de dançar, e parou em frente os membros da Klan. Sra. Tyler chorava, o grisalho suava de medo e o outro, um rapaz extremamente forte, fingia coragem.

— Desembuchem - a voz não era dela - quero saber os seus postos na hierarquia, tudo. Isso vai determinar a punição de vocês.

O Grande Dragão começou a chorar também, incapaz de falar. Todos ali sabiam bem quem ele era, mas precisava ser condenado por sua própria língua. Reconhecer. O outro rapaz, que era um Ciclope, também estava mudo.

Sra. Tyler, vendo que ninguém se pronunciava, tentou uma cartada desesperada. Caiu de cara no chão, começou a babar e engrossou a voz. Entregou os nomes e os postos dos amigos e começou a rir histericamente, enquanto o Grande Dragão a xingava, vermelho de raiva.

"Que traidora. Quer a todo custo salvar o rabo." - pensou Valerie, mas nem todos perceberam que a loura fingia. Alguns vodunistas ficaram confusos. Então a mambo falou de novo:

— Ela mente, não está possuída, mas precisamos ter certeza. Talvez seja algum "de la Croix" querendo se divertir. Esfreguem isso nas partes dela. - ela sentenciou, entregando a garrafa de rum apimentado aos seguidores.

Com muito trabalho, afastaram as pernas da Sra. Tyler, rasgaram sua calcinha e então passaram aquele líquido ácido nos lábios vaginais dela. Valerie nunca escutou um grito de tanta agonia na vida... e a farsa da loura foi descoberta. Mandjula, enfurecida, pegou um pote de barro que continha um estranho líquido - irreconhecível mesmo pelo cheiro - e forçou o homem grisalho a beber:

— Você, que se diz um Grande Dragão, vai beber isso aqui. - e os negros caíram em cima, forçando aquilo a descer por sua boca. Ele tentou cerrar os dentes, mas a mambo foi implacável - "Quebrem."

Enfim ele bebeu, caiu no chão como que possuído, convulsionando por alguns minutos, então silenciou e parou. Morto? Sra. Tyler chorava, quando o pote de barro foi enfiado em sua boca. Ela lutou com todas suas forças, mas enfim acabou vencida pela bebida, sob o olhar curioso de Valerie, que se aproximou:

— Qual de vocês queimou meu amigo? Quem acendeu a chama?

Sra. Tyler sentia-se flutuando, seus lábios incharam e sua língua também, ao ponto de não conseguir falar. Quis vomitar, mas não podia. Os tambores ao redor soavam cada vez mais frenéticos, e o olhar dela parecia acompanhar isso. Dobrou-se dolorosamente e caiu para frente, ficando imóvel assim como o Grande Dragão.

Mandjula voltou-se então para o Ciclope da Klan. O rapaz não quis demonstrar medo, mas seu próprio olhar o traiu. Quando a mulher se aproximou de seus lábios, ele gritou - e só ele mesmo poderia dizer o que viu quando a boca de Mandjula se entreabriu - e recebeu um beijo fatal. Valerie ficou pasma, mas a mambo o beijava com fúria, como a melhor das amantes, e então ele começou a definhar e morrer. Não era nada físico, não que ele tenha murchado, mas caiu no chão como um saco de batatas, assim que o beijo terminou. Morto. O diable tinha comido o homem.

O ritual para Valerie terminava ali. Sabia que os tambores ainda tocariam até o amanhecer, então olhou para Mandjula, e fez uma despedida silenciosa. Sentiu-se vingada, assim como sabia que Spot também estava. Os vodunistas cumpriram sua parte no acordo: a cabeça da Klan em Sistinas estava morta. Mas, mesmo agonizantes, os fanáticos não citaram em momento algum Sammael...


Duas noites depois, e o bokor cavava, cantarolando. Nem parecia estar num cemitério, profanando um túmulo. Nada no mundo podia afetá-lo enquanto estivesse sob proteção do Barão Samedi. Abriu uma cova, e lá estava a Sra. Tyler. Ele a retirou cuidadosamente, e despejou algo em sua boca. A defunta, por incrível que pareça, engasgou e levantou-se. Tinha o olhar vazio, sem brilho natural da vida nem de inteligência, parecia descerebrada, catatônica; outrora uma das líderes da Klan, agora transformada em um mero zumbi, sob o controle do bokor...

Ele não percebeu, mas uma atenta Valerie o observava de longe. Depois que deixou o cemitério com a Sra. Tyler foi seguido o tempo todo pela vampira. Em minutos alcançou uma cabana particular, no meio de um grande terreno afastado de tudo, um lugar diferente de onde Valerie tinha o encontrado na primeira vez. Velas acesas no interior daquela choupana projetavam sombras femininas nas janelas, por onde um cheiro forte de ervas escapava. Na porta, o símbolo mágico desenhado do Barão Samedi parecia guardar as moças lá dentro. Eram três louras, que começaram a chorar quando Sra. Tyler se juntou a elas. Pela lentidão dos movimentos e olhares escravizados, também eram zumbis.

A vampira enxergou as mulheres apenas quando o bokor abriu a porta, mas ele em seguida a fechou. Valerie aproximou-se de uma janela para saber que tipo de perversão acontecia lá dentro. O bokor tirava suas roupas e com a bengala afastava as nádegas de uma das mulheres, que estava de quatro no chão, com o quadril totalmente jogado para cima. Val reconheceu aquele rosto, uma famosa atriz pornô que aparentemente tinha se suicidado, deprimida por uma cicatriz no rosto após um infeliz acidente de carro. Parece que ela estava chupando o pau do motorista na hora da batida, e...

Outra loura estava grávida, provavelmente daquele negro. Pelo tamanho da barriga que carregava, ela devia estar no último mês. Parecia nem ter noção do seu real estado, e seus seios estavam enormes, cheios. Em cada um deles tinha oito prendedores de roupa, tão apertados que Valerie sentiu dor só de olhar aquilo. Essa grávida estava sentada quieta, olhar petrificado, já tinha parado de chorar após levar um sonoro tapa no rosto. A marca da pesada mão do bokor ainda era visível.

A terceira loura tinha algemas nos tornozelos, e diversas contusões e cicatrizes no corpo, além de alguns entalhes feitos à faca em sua pele, com dizeres vulgares e palavrões. Alheia a tudo, estava de pé encostada em uma parede, onde rabiscava nervosamente - rabiscava usando as próprias unhas!

Valerie, que tinha seguido o bokor para ver se Sammael apareceria para atacá-lo, revoltou-se com a visão. Em nada aquele homem era melhor do que os membros da Klan. Zumbificava mulheres para usá-las, para satisfazer suas vontades doentias. Quis entrar na cabana, mas os símbolos mágicos pareceram funcionar, pois apesar dela usar toda sua força, a porta nem se mexeu. A vampira tentou as janelas, e o efeito foi o mesmo. Lá dentro, o bokor sorria e pegava uma pequena boneca vodu... uma paket.

De repente, o teto quase desabou quando a vampira pousou no meio da sala. Correu os olhos rapidamente pelo ambiente. Tudo cheirava a mofo e velas. As mulheres continuavam em suas posições submissas, continuavam totalmente alheias.

"Eu não durmo então eu não sonho então eu não acordo assustada", era o que estava escrito à unha na parede da cabana; os dedos da loura terminavam em carne viva. Valerie voltou-se para o bokor, foi quando sentiu uma forte pontada no olho esquerdo, que começou a sangrar. Meio cegada, avançou na direção dele, apenas para sentir seu outro olho perfurar. Nas mãos do negro, a pequena paket tinha dois pregos enferrujados espetados. Valerie caiu, por um segundo desorientada. Ela não dependia tanto assim da visão. Acostumou-se com isso, usaria seus instintos, então sentiu uma forte pontada no pé e soube, mesmo sem enxergar, que o bokor espetava furiosamente a boneca.

— Roubei o fio de cabelo que você deu à Mandjula. Sabia que você não era digna de confiança. Uma branca sempre será uma branca. Assim pude fazer essa bonequinha, que vou jogar no fogo, mas não antes de furá-la toda. Você é muito poderosa pra ser escravizada, então terá que morrer.

Valerie sentia repetidas pontadas, seus pés doíam ao ponto de ter que se arrastar. Seus ouvidos sangravam, assim como os olhos. "Me ajudem!", ela gritou para tentar acordar as louras. Ouviu alguns passos débeis, mas nada aconteceu. O negro continuava sorrindo, enquanto enfiava mais um prego.

Então veio o inesperado: a loura que rabiscava tirou bruscamente um dos pregos da boneca para continuar seu trabalho na parede. Por um instante Valerie voltou a enxergar, e o que viu primeiro foi a jugular do bokor. Juntando toda sua força que ainda restava, jogou-se em cima dele e a paket caiu longe.

— Você me usou, cadela branca. A mim e a todos os vodunistas! - ele gritou, raivoso, tentando manter os caninos de Valerie longe de seu pescoço.

— Branca não... pálida!

— Julga sua magia mais poderosa que a minha? Olhe ao redor! Essas mulheres, eu roubei o ti bon ange de todas elas, elas me pertencem agora!

— Vou te dizer o que penso sobre sua magia... - começou Valerie, já recuperada - Você não roubou alma alguma. Vocês drogam as pessoas com tetrodotoxina, o veneno neuro-tóxico que induz a catalepsia, e depois as confinam em caixões e a falta de oxigênio causa danos irreversíveis no cérebro. Por isso elas ficam assim, catatônicas! - a vampira gritava de raiva, e respingos de sangue sujavam o rosto do negro. Ele encolheu-se, visivelmente perdido.

Então a porta se abriu (Valerie achava que poder algum na Terra poderia abri-la) e Mandjula apareceu. Abaixou-se, graciosa, e pegou a boneca largada do chão.

O negro voltou a sorrir. Valerie tensionou os músculos para saltar na mambo, quando ela soltou novamente a paket. "Não vou tomar parte disto." O bokor engoliu seco, subjugado pela vampira, e começou a gritar. Seguiu-se uma rápida discussão no dialeto deles. A mambo acusava o homem de ser "um mero malfacteur", que envergonhava o vodu.

— Eu fiz um pacto com um djab, deixei que me possuísse, para você me trair com esse circo de horrores? - ela apontava para a loura grávida, que babava com a cabeça pendendo de lado - Seu loa está envergonhado, você não tem mais poder algum. Seu castigo será o mesmo sofrimento que deu às suas vítimas!

Mandjula entregou um pote de barro à Valerie que, com todo o prazer do mundo, quebrou com um soco os três dentes frontais do bokor. Obrigou-o a engolir aquele líquido, matando afogadas as súplicas do feiticeiro.

— Por que se voltou contra ele? - quis saber Valerie.

— Só voltamos o lado Petro, a magia negra do vodu, contra pessoas que realmente a mereçam. Pense nisso como a lei do retorno. Por isso matei aquele Ciclope, um criminoso que queimou vivo um negro. Mas Joseph sujou-se em aplicar os conhecimentos de nossos ancestrais para coisas mundanas, ainda mais para sexo. Agora, o próprio Samedi vai querer cavar a cova dele!

— Que faremos com essas mulheres?

— Como sabia sobre nosso método de criar zumbis? Sobre a droga? - Mandjula colocou outra pergunta.

— Eu li a respeito, mas não sabia ao certo. Só tive certeza quando vi que uma das louras estava grávida. Se estivesse mesmo morta, isso não seria possível.

— Você sabe tudo sobre gente morta, não é?

Valerie ignorou o comentário. Seus olhos ainda estavam inchados e sangravam um pouco, assim como os ouvidos e seus pés.

— Cuidarei das mulheres. - falou a negra, respondendo à pergunta feita antes - Apesar de ter que deixá-las aqui por essa noite com o cadáver de Joseph, eu saberei o que fazer. Preocupe-se com seu inimigo, que não pegamos. A Klan morreu em silêncio, ninguém falou nada.

Era verdade. Seus aliados podiam estar mortos ou zumbificados, mas Sammael ainda estava à solta...


Mandjula voltou quase ao amanhecer para o peristilo, e esperava que a cerimônia daquela noite tivesse terminado. Não gostava de se ausentar dos rituais, afinal ela era a mambo. Mesmo assim precisava resolver o assunto do bokor. Talvez todos os homens e mulheres estivessem exaustos de tanta música e dança. E sexo. Esperava encontrar um negro forte ainda querendo transar e deitar-se com ele numa esteira... Mas o que a sorcière viu foi tudo queimado, o peristilo crepitando em chamas altas como barreiras do inferno, como se uma horda de djabs tivesse passado cuspindo por ali. O lugar cheirava à carne queimada, e ela se perguntava como todos puderam morrer daquela maneira, incinerados...

Quando achou o corpo caído de uma conhecida sua, ela entendeu: foram mortos primeiro, e só depois os assassinos atearam fogo no terreiro todo. Mas, quem tinha feito aquilo? A Klan estava toda morta. Eram cerca de vinte vodunistas naquela noite, menos da metade da grande cerimônia de sábado; claro que algumas idosas, mas a maioria eram jovens fortes. Examinou os ferimentos da moça morta (que se chamava Kaina) e teve a segunda certeza: um maldito vampiro! O pescoço da menina estava quase separado do corpo por uma mordida sinistra.

— Ah, você veio. Mesmo o veneno de uma serpente negra pode ser doce, sabia? - algo falou, sibilando atrás dela.

Mandjula voltou-se devagar, com os lábios tremendo, pedindo por uma possessão. Por algo que a salvasse daquela criatura de caninos amarelados... o inimigo de Valerie! Teve medo de encará-lo, então manteve a cabeça ligeiramente abaixada, olhando para a cobra morta que ele carregava. As mãos dele estavam lavadas com sangue vodu, e tinham fiapos de carne e pele grudados nas unhas pretas.

— Não pense que isso é uma punição por matarem todos os fanáticos da Klan. Eram meus peões, pouco me importa as diferenças raciais entre KKK e vodu. Esse é o jogo, e essa é a diversão. Vocês são meros peões dela, que orquestrou essa vingança.

— A... pálida?

— Sim, é ela quem eu quero. Vocês foram usados, assim como eu usei a Klan. Eu matei, sim, o escravo negro dela, mas meu único alvo era a vadia branca. Só que vocês se envolveram... e agora não vai sobrar nenhum: eu vou caçar, beber e queimar todos os vodunistas de Sistinas!

— Mate-me logo, criatura. Quero ficar com os meus. - disse Mandjula, mas não sem medo. Era apenas a criança ali, nada de Erzulie, nem de possessão. Nenhum loa.

— Ah, gosto de pessoas práticas assim. Vou lhe dar a morte rápida apenas por estarmos perto do amanhecer - Sammael deu um passo na direção dela, soltando a cobra esmagada no chão - mas isso não significa que não vá doer!


Na noite seguinte, Valerie estava recuperada, apesar das agulhadas místicas ainda doerem um pouco. Um estranho pacote chegara durante o dia no Princess of the Night, e a vampira teve um péssimo presságio antes de abrir, pois o conteúdo cheirava à carne humana. Só podia ser um recado de Sammael...

Dentro do pacote veio o coração de Mandjula, embrulhado com sua pele. O garde de Erzulie que Valerie viu ser tatuado perto da virilha da mambo estava ali. O bilhete, obviamente, estava escrito em sangue:

"Uma pena não ter fodido como gostaria essa vadia antes de matá-la. Era uma bela negra. Sabia que ela rezou para seu Bondye crioulo antes que eu a mordesse? E você - que agora se chama Valerie - pra quem você vai rezar? Orações me excitam..."

O recado fez o efeito desejado, deixou Valerie assustada, ciente que seu antigo inimigo voltou para caçá-la... E agora, qual seria o próximo passo dele?


Algum tempo se passou, e ninguém jamais voltou àquela cabana no meio do nada.

Lá dentro, algo acorda. Desorientado, apoia-se numa bengala para se erguer. Não enxerga direito, vê apenas vultos brancos de cabelos amarelos. Passa a língua nos lábios ressecados, e vai até um espelho, onde se mira. Olhos vermelhos queimando. Continua não enxergando direito, nem tem inteligência suficiente para entender o pouco que refletia. Não sabe dizer o que sente, nem o que exatamente dói, apesar de um simples passo ser lancinante.

Aos seus pés, um dos vultos brancos de cabelos louros teve sua barriga aberta, por onde vazou todo seu sangue, entre outras coisas. Alguns pedaços estão faltando. Ele lembra, de repente, que seios são partes mesmo macias.

Atrás dele, estão outros três vultos louros. Ele percebe que não consegue virar o pescoço, então volta-se tão rápido quanto pode, mas isso é muito devagar. Aos poucos percebe que são vultos femininos, e sua libido dá mostras de que também ressuscitou. Ele descobre que deseja aquelas criaturas.

Então um dos fantasmas brancos se ajoelha na sua frente, e ela tem sangue nos lábios e nas mãos, assim como as duas outras que caminham lentamente atrás dela. Em seus rostos desenha-se uma expressão faminta...


Comentários do autor

No Haiti, o Vodu é a religião oficial. Durante o tráfico negreiro, por volta de 1750, os colonizadores compraram muitos escravos africanos, que se multiplicaram. O Vodu ajudou a resistência à escravidão e foi combustível para a única rebelião de escravos de sucesso real na América, responsável pela formação da primeira república independente negra americana, o Haiti, em 1804.

O código penal do Haiti fala sobre Zumbis:
"E também se considerará tentativa de homicídio o envenenar de uma pessoa usando substâncias mediante as quais não é morta mas fica reduzida a um estado letárgico, mais ou menos prolongado, e isto sem consideração da maneira em que as substâncias foram usadas ou qual foi seu efeito posterior. Se depois do letargo a pessoa é sepultada, então o ato será considerado assassinato."

"Loco Miroir" foi publicado originalmente em 11.07.04.


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