Sistinas
Os espelhos
#44

Os espelhos

"Espelho espelho sobre a parede
olho mágico do demônio
um reino de loucura despertado pelo chamado
Fale as antigas palavras mágicas
tente obter o controle
a essência do mal, um desafio para sua alma"

Mirror, Mirror - Candlemass

"Estou com medo de me apaixonar por você" - ela tinha dito naquela tarde chuvosa, enquanto ele dirigia o carro em direção ao fim do mundo. A frase mais covarde que já ouvira. Sugeria um monte de coisas que Brian não queria pensar no momento. Que ele não valia à pena, por exemplo. Ou que ela não gostava dele como era, e que talvez precise mudar algo para merecer o amor dela. Na estradinha de terra deserta, Brian se mirou no retrovisor. O senhor Gengiva estava lá.

"Senhor Gengiva" era mais que um nome, apesar de não estar escrito em lugar algum. Era assim que gostava de se chamar quando estava com raiva. E passava a maior parte da vida com raiva de si mesmo. Veronica rejeitar seu amor também o deixava com uma ponta de raiva. O apelido terrível - que ele usava como um codinome em sua guerra interior - foi dado por um moleque na época da escola, por um motivo muito simples: suas gengivas apareciam demais, principalmente quando sorria. E de boca fechada ele tinha aquele jeito deselegante de quem usa aparelho nos dentes. Brian cresceu reprimido, introvertido, um menino que não sorria, envergonhado e tímido demais em seu canto, deixando a vida passar lá fora. E agora, deixando o amor por Veronica passar. No fim, concluiu, era um covarde também. Covardes se machucam menos.

Veronica, a dos belos cabelos, o acompanhava para buscar umas coisas que ele tinha herdado de uma falecida tia-avó com quem nunca tivera contato. Ela tinha se isolado de tudo e todos, indo morar numa propriedade rural bastante afastada, trinta anos atrás. Os boatos que corriam nas ceias de Natal, ocasiões únicas em que a família se reunia, era que a velha tinha pirado. Que estudava constantemente livros de magia, sendo totalmente influenciada por eles. A notícia da morte dela não surpreendeu ninguém, afinal nem mesmo as bruxas vivem para sempre. O intrigante foi o telegrama, informando sobre alguns objetos que ela deixara para ele, entre os quais duas pomposas caixas pretas.

Brian pediu a companhia de Veronica na pequena viagem para expôr seus sentimentos. Mas percebeu que ela não queria falar sobre relacionamento, e emudeceu até chegarem na casa da falecida.

A casa simplória cheirava à gente velha e mijo de gato. E no porão, entre as paredes mofadas, ele encontrou as duas grandes caixas negras, feitas de madeira lustrosa. Abaixou-se ao lado de uma delas para examinar, e percebeu que na tampa havia uma inscrição entalhada. Uma rima, como de criança:

"Quando você olhar para mim

eu nunca lhe mentirei

Serei uma janela de sua alma, e assim

tanto luz quanto sombras mostrarei"

Curioso, sem pensar nem um minuto sequer, Brian abriu a tampa para revelar o conteúdo, que estava embrulhado em um tecido tão branco que incomodava os olhos: um grande espelho, tão antiquado quanto bonito. Veronica deu um leve sorriso quando ele levantou os olhos, procurando por ela.

A outra caixa ao lado também tinha sua rima entalhada:

"Em mim muitos enxergam a própria morte

enquanto outros enxergam o saber da vida

Para fixar o olhar em mim é preciso ser forte

e no fim suportar as dores da ferida"

Outro espelho, tão esplêndido quanto o primeiro, descansava em linho branco dentro da segunda caixa.

— Será que se olharmos fundo nesse espelho veremos nossa própria morte? - Veronica perguntou, sem esconder o sarcasmo.

— Aqui diz que ela estudava espelhos como objetos mágicos. - ele falou, lendo a espécie de pergaminho que também achou dentro da caixa - Que aprendeu como fazer um bom espelho seguindo rígidas instruções de Dorottya e Katalina, duas bruxas criadas de Erzsébet Báthory, uma condessa que perdia seus dias admirando a própria beleza diante de um desses.

— Achei que essas coisas só aconteciam em filmes da Disney.

— Bruxaria também é coisa de filme infantil, do espelho da Branca de Neve até Alice no país dos espelhos. Sabe... se eu tivesse poderes mágicos de verdade, acho que perderia minha vida fazendo o bem e o mal para os outros. Mais o mal, claro. Poucas pessoas merecem o bem. - Brian às vezes deixava transparecer um rancor com a vida que deixava Veronica desconcertada.

Ele examinou os outros objetos da herança, que se resumiam em alguns castiçais e um pequeno grimório em linguagem estranha.

— Belo par de espelhos. De molduras antigas, vindos de outros tempos. - ela comentou tentando criar assunto, tamanho foi o silêncio que baixou naquele porão.

— Gostou? Fique com um deles, é um presente.

— Ah, não, eu não poderia... - ela começou protestar, meio sem jeito. A verdade é que não queria aquela coisa mórbida em sua casa, o artefato de uma falecida, feito sabe lá com que propósito.

— Você pode colocá-lo em seu quarto. Imagine, é um espelho grande, quase de corpo inteiro!

— No meu quarto...? Não, não posso aceitar.

— Ah, qualé? Você é vaidosa, e toda mulher quer um espelho desses. Vai, aceita!

Veronica perdeu as forças para negar. A contragosto, acabou por aceitar; até mesmo por que queria sair daquele lugar quanto antes. Brian também quis deixar logo a casa da bruxa e suas lembranças para trás. Voltaram para o carro, e pouco conversaram na estrada de volta: Veronica lhe dizia que seu problema com a gengiva era fácil de resolver, que uma cirurgia de correção ajeitaria seu sorriso. Ela gargalhou quando ele comentou que achava ser necessário serrar o osso do maxilar para acertar os dentes. E assim a tarde chuvosa foi tornando-se uma noite tempestuosa.

Ele a deixou em casa, mas não conseguia tirá-la da cabeça, e para ficar mais alguns minutos por perto, instalou o espelho no quarto dela. E teve claramente a impressão de que ela permitiu apenas para se livrar logo dele.

Horas mais tarde, resolveu ligar:

— Então, que vai fazer essa noite?

— Nosso passeio me cansou mais que eu imaginava, Brian. Agora só quero dormir ouvindo barulho de chuva.

Brian suspirou, pensou um instante, mas perguntou o que seu coração pedia:

— Existe outra pessoa, Veronica?

— Hein? Não... não. - ela respondeu, mas ele não sentiu firmeza.

— Certeza?

Veronica não gostou de ser encostada na parede daquela maneira. Talvez tenha sido o tom de voz zombeteiro e provocativo que ele usou, então ela resolveu abrir o jogo:

— Brian, o que existe entre nós é um lance carnal. Pode rolar outras vezes, ou nunca mais. Mas eu não quero um namorado. Gosto de ser livre.

Poderia ribombar um trovão lá fora naquele minuto. O jeito como a frase o atingiu causaria o mesmo efeito, susto, surpresa e, por fim, irritação. Desligou lentamente o telefone na cara dela. Raiva. Virou-se para espelho de sua tia-avó, e o senhor Gengiva lhe devolveu o olhar.

Foi quando percebeu que conseguia ler a capa do grimório abandonado perto da moldura envelhecida do espelho. Os garranchos que a velha escreveu refletiam palavras claras. As letras estavam ao contrário, um velho truque. Leonardo da Vinci, em sua paranoia, já usava desse expediente. Brian sentou-se ao lado do espelho com o livro na mão, e leu sobre magias e rituais, até que a energia elétrica da casa acabou, afetada pela tempestade. Sem se abalar, ele arranjou velas. Nem percebeu que tinha disposto os castiçais nas posições indicadas no grimório. Sua tia-avó misteriosa parecia falar com ele.

Brian leu tudo sobre as ligações entre o espelho e a alma, sobre crenças antigas, mas ignorou os conselhos de se cobrir espelhos durante as tempestades. Com o estouro altíssimo de um trovão lá fora, ele pensou na rima: "Para fixar o olhar em mim é preciso ser forte/e no fim suportar as dores da ferida."

"Fixar o olhar em... mim." - encarou o espelho, pensando na ideia simples contida naquela rima. O senhor Gengiva exibia um olhar enigmático do outro lado, pesando as palavras. Brian tinha lido que era preciso concentrar os olhos em algum ponto central do espelho, lutar contra a vontade de cerrar as pálpebras, negar o impulso... negar a vontade de não querer ver! A superfície reflexiva aos poucos foi tremulando, cedendo, pareciam que as partículas elétricas da tempestade dançavam em suas pupilas (não feche, não feche, não feche!), relâmpagos ora azuis, ora avermelhados, começaram a desenhar imagens de um lugar familiar. Enfim, reconheceu: era o quarto de Veronica, do outro lado do outro espelho!

Quando Brian se acostumou com a imagem do ambiente, delineada pela luz de abajur, reparou na agitação frenética dos lençóis até entender que a mulher não estava sozinha. Deus quis que aquilo no espelho não tivesse som, agradeceu por não ter que ouvir os gritos extasiados de Veronica nem o ranger da cama. O homem foi primeiro, arqueando as costas, onde as unhas de Veronica se enterravam. Ela foi logo depois, uma de suas longas pernas esticou-se para fora dos lençóis. O homem levantou-se, passando nu em frente aos olhos incrédulos de Brian, já retirando a camisinha, em direção ao banheiro. Quando ele abriu a porta, um jato de luz banhou a cama, onde Veronica se espreguiçava languidamente, como sempre fazia quando estavam juntos. Fez o mesmo movimento atlético de erguer o quadril e rapidamente subir vestindo a calcinha, que estava pendurada em sua canela esquerda. Enrolou-se nos lençóis, escondendo os mamilos ainda bastante duros. O falso pudor de se cobrir após o sexo. O mesmo olhar de satisfação.

"Mas ela me disse que não havia outra pessoa..."

Seu ódio quase sumiu quando ela olhou diretamente para o espelho. Será que poderia vê-lo, enxergá-lo do outro lado, assim como ele podia? A expressão vaga e o risinho bobo nos lábios dela diziam que não. Óbvio, Veronica não sabia o modo correto de olhar. Não tinha força de vontade. Era covarde. Estúpida.

"Será que se olharmos fundo nesse espelho veremos nossa própria morte?" - ele imaginou Veronica perguntando de novo.

No quarto, o homem voltava animado do banheiro. Ela escorregou da cama, os olhos brilhando de excitação enquanto se ajoelhava, o jeito reverente como ela segurava o pau do homem, analisando, antes de engolir quase por inteiro. A saliva abundante que ela empregava na tarefa, o punho firme e decidido com que o masturbava. Apostava que ela estava gemendo baixinho nesse momento, beliscando o próprio mamilo em busca do tesão para continuar mamando. Não era o esporte favorito dela. Não. Veronica gostava mesmo era de foder; penetração pura e simplesmente. Como a cadela que realmente era. Enraivecido, Brian continuou olhando, cada rebolada dela, cada investida do homem pra dentro daquelas carnes molhadas, cada mudança de posição dos dois... cada segundo daquela fria e maldita noite de temporal.

Brian caiu no sono horas depois dos amantes dormirem. Quis ter certeza de que não recomeçariam. Sonhou com a noite em que gravou "Wherever You Will Go" para ela, e que depois cantaram juntos num karaokê, praticamente afogados em sakê, bebida traiçoeira que você vai consumindo sem perceber que está ficando bêbado. Os dois discutiram se a melhor versão era a do "The Sign", ou se a regravação da banda "The Calling" era superior. Descobriu que mesmo um sonho pode machucar, pois ouvia Veronica claramente cantando:

"Se eu pudesse, então eu iria

Eu iria onde quer que você fosse

Bem lá no alto ou lá embaixo

Eu iria onde quer que você fosse

E talvez, eu descobrirei

Um jeito de fazer isso voltar algum dia

Para te assistir, para te guiar

através da escuridão de seus dias

Se uma grande onda caísse e caísse sobre todos nós

Então eu espero que haja alguém lá fora

Que pode me levar de volta a você"

Nessa última frase, Brian pulou da cama, acordando no ato. O espelho, seu único companheiro agora, estava coberto com o linho branco de sua falecida tia-avó.

Não queria mais olhar para ele. E nunca mais queria olhar para Veronica. Mas, infelizmente para os dois, ela acordou com ótimo humor. E foi procurá-lo antes mesmo do almoço.

— Tudo bem?

— Sim.

— Ah, não. Não está não. Está com raiva de mim?

Brian viveu aquele um segundo furioso que todos nós já passamos um dia. Aquele um segundo em que temos os piores pensamentos possíveis, o lado negro da vida, dos relacionamentos, onde você separa o pior sobre uma pessoa, cada defeito, cada culpa, cada falta, e então despeja aquele caldo rançoso e amargo como fel em cima do alvo. Mas ele engoliu tudo e respondeu calmamente a única frase que conseguiu resmungar:

— Não esquenta.

— Olha... - ela começou, escolhendo palavras - ficou um clima pesado entre a gente desde a conversa no telefone, mas eu quero consertar as coisas. Gosto de você, vamos ficar bem. Faz tempo que não saímos, que tal hoje à noite?

Aquilo fodeu de vez com os neurônios dele.

— Desde que não me peça em namoro. Ainda gosto da liberdade. - ela completou, rindo. Tentando fazer graça da situação. Veronica não estava rindo "com ele", estava rindo "dele", que são coisas muito diferentes. O que ele retribuiu não foi um sorriso, apesar de parecer. Rangeu os dentes, salientando ainda mais a gengiva:

— Claro, podemos sair sim. Consertar as coisas. No horário de sempre?


22:30hs mostrava o relógio. O "horário Veronica", ele chamava. Eles eram bastante previsíveis nesses programas, iam sempre aos mesmos lugares, bebiam, dançavam e transavam para fechar a noite. Brian pesquisou sobre vários motéis durante o dia na internet, até encontrar um que se encaixava em suas necessidades. Já bastante alcoolizada, ela o acompanhou.

Foi o Senhor Gengiva quem fez sexo com Veronica naquela última vez, e não o excessivamente carinhoso Brian. No começo ela estranhou um pouco a "pegada" daquele novo amante direto, sujo e selvagem, mas não reclamou. Não poderia esperar coisa diferente após dizer que o lance entre eles era carnal.

Tão carnal que ele rasgou a calcinha dela, na ansiedade de deixá-la nua. Jogou Veronica na cama, caindo por cima, e afastou as nádegas dela, lambendo com vontade todas suas pregas e descendo até a vagina, onde enterrou a língua para sentir o gosto de Veronica. Dedicou alguns minutos nessa exploração do sexo dela, lambendo até mesmo o suor que se acumulava nas virilhas. A mulher já estava extasiada, e quis agradá-lo um pouco também. Enroscou um dos pés no braço dele, puxando-o, convidando na linguagem corporal do sexo que ele chegasse mais perto, que subisse na cama com ela. Ele recusou, se fazendo de difícil, ficando de pé. Um convite para que ela o chupasse também.

— Como você está duro... nunca te vi assim.

— Então não perde tempo falando, vagabunda.

— Desde quando aprendeu a me xingar, seu puto?

— Desde que percebi que você gosta, sua puta.

Aquilo era verdade. Estimulava até mesmo o sexo oral, que ela não gostava muito. Bebeu algo, para criar coragem. Então encostou os lábios no pau (ela gostava de chamar de "cacete") dele, e primeiro lambeu de leve. Revezava entre lambidas e a masturbação, já que não gostava de tê-lo na boca. O nojo de "chupar cacete" vinha da primeira vez dela, quando chupou um menino de 15 anos, que afobadamente acabou gozando, e Veronica engasgou feio. Fora que o gosto do moleque era horrível. Desde então ela guardava um pequeno trauma.

Brian não estava gostando daquele boquete sem graça. Apertou com força o rosto dela entre seus dedos, forçando Veronica abrir a boca:

— Faz direito, putinha. Capricha. Parece que tá faltando saliva nessa sua boquinha. - ele apertou mais o rosto dela, então chegou bem perto e cuspiu dentro da boca aberta da mulher.

— Estou com sede, porra. Minha boca tá seca. - ela respondeu, irritada.

Ele pegou uma das várias garrafas que ela estava bebendo antes, esquecida ao lado da cama, e então enfiou asperamente o gargalo com seu pau na boca dela, segurando-a pelos cabelos.

— Calma Brian, o que você tem hoje?

— Trepe como se fosse a última vez Veronica. Como se não tivesse amanhã, tá entendendo? Dá tudo que eu quero, que eu tô cheio de porra aqui pra você!

Assim que Veronica voltou a segurar o pau enrijecido, ele a dominou: deitou a mulher na beirada cama, e posicionou-se em cima dela. Praticamente sentou no rosto da morena, forçando a penetração na boca. Antes que ela protestasse, ele a pegou pelo pescoço, imobilizando-a. Sentia o cacete tocando fundo a garganta dela, quase forçando o vômito de sua parceira. Veronica estava congestionada, uma veia enorme cruzou sua testa, saltada, sinal de que sufocaria. Os olhos avermelharam, suplicantes. Brian lembrou do que viu no espelho e quis matá-la naquele exato instante. Quase gozou com a possibilidade. Foram as unhas dela arranhando seu braço que o trouxeram de volta.

— Caralho, Brian, você - cof, cof! - foi longe demais agora, qual seu problema?

— Que foi Veronica? É só tesão. Eu que pergunto agora; desde quando você ficou careta assim pra transar?

Ela não respondeu. Sentiu-se desafiada e continuou bebendo. Veronica até gostava de transar "meio alta"; ficava mais soltinha para certas coisas diferentes. Brian também consumia várias doses de álcool para criar coragem - o álcool também se tornaria seu álibi mais tarde - mas sem se descuidar de seu plano maior. Precisaria de um mínimo de sobriedade para levá-lo adiante.

Antes que o clima esfriasse, ele a convenceu a entrar na piscina:

— Vamos, agora é sua vez de comandar um pouco da ação.

— Ah, não... não gosto de transar na água. Tira minha lubrificação, e depois "ela" fica bastante ardidinha.

— Deixa "ela" comigo que eu dou um jeito. - ele respondeu, sentando-se na parte rasa da piscina. Brian disfarçou o nojo que sentia. Imaginava a quantidade de casais que tinham transado ali antes. De quanto em quanto tempo trocavam a água da piscina? Quanto de cloro tinha ali? Cloro mata tudo mesmo? Era bom estar remoendo aqueles detalhes, sinal de que ainda se mantinha parte sóbrio, alinhado com o plano.

Ela sentou-se de costas para ele, rebolando até ser penetrada. Veronica era daquelas mulheres de quadril largo, mas que não tem uma grande bunda. Mesmo assim era um rabo gostoso de pegar, e a visão dos longos cabelos negros balançando ao vaivém da cavalgada furiosa dela o excitaram tanto que ele gozou em poucos minutos. Ela, visivelmente desconfortável, com as mãos apoiadas no fundo da piscina, ainda cavalgou mais um pouco, até desistir de chegar ao orgasmo.

Ela deixou-se de costas na piscina, exausta e insatisfeita. Reparou no espelho que cobria todo o teto, olhando para o reflexo do novo homem ao seu lado. O novo e estranho Brian, que ela não sabia se gostava direito ou não. O álcool e a excitação não a deixava raciocinar sobre o quanto ele tinha mudado depois daquela pequena discussão ao telefone.

— Vou dar uns mergulhos antes de tomar uma ducha, mas estou com medo de ficar tonta, Brian. Pode ficar aqui comigo, na água?

— Claro. - respondeu o senhor Gengiva, depois apontou: -Olhe, ali é melhor para mergulhar.

Veronica aceitou a sugestão e mergulhou, depois subiu, brincou de nadar por uns instantes e mergulhou novamente, mais confiante, mais fundo.

Quando quis voltar à superfície, um tranco fortíssimo puxou seus longos cabelos, com tanta violência que quase quebrou seu pescoço. A desorientação misturou-se com o pânico, e ela não sabia mais se queria usar as mãos para tentar nadar ou para soltar os cabelos presos no ralo, sendo engolidos e mastigados pela bomba que oxigenava a piscina. O mecanismo aspirava água naquele ponto e soltava em tantos outros, reciclando, fazendo o barulho da morte nos ouvidos de Veronica.

O senhor Gengiva roía as unhas nervosamente. Sabia, pelas pesquisas na internet, que aquele motel não tinha câmeras de segurança desde o processo que sofreram por invadir a privacidade de um casal. Aquele seria o crime passional perfeito. Não teve coragem de se aproximar de Veronica, olhar para ela na última batalha pela vida. A mulher prendia a respiração, mas a água entrava aos poucos pelo nariz, e ela se debatia descontroladamente, sem conseguir soltar o cabelo do ralo. O corpo, em pânico, fecha a laringe nesse instante, lutando ao máximo contra a água.

Em questão de minutos ela perdeu a luta, a água enfim desceu por sua traqueia, encharcando os pulmões e privando todo o corpo de oxigênio, lesionando o cérebro, embotando os impulsos nervosos e a contração muscular. O coração de Veronica parou de bater antes de nascer um novo dia.

Ele nadou até o cadáver de Veronica e ficou por ali boiando, mirando o espelho do teto, a expressão serena e, ao mesmo tempo, mortal, tão traiçoeira quanto a água da piscina. Aguardou por mais de 20 minutos, o dobro do tempo que um coração normal consegue continuar batendo - e o triplo do tempo que o cérebro dela suportaria - sem oxigênio. Na mente do senhor Gengiva, Veronica perguntava outra vez:

— Será que se olharmos fundo nesse espelho veremos nossa própria morte?

Depois disso, o telefone da recepção tocou, e Brian gritou entre soluços que alguém fosse até a suíte ajudá-lo. Foi preciso cortar quase todo o cabelo de Veronica para retirá-la da piscina. Ela ficou lá por horas, com seus olhos arregalados e pupilas dilatadíssimas, refletida no espelho do teto. A polícia interrogou Brian apenas como formalidade, já que bebedeiras seguidas de afogamento eram tragédias recorrentes. A investigação conduzida nos dias seguintes só encontrou bastante água nos pulmões - que descartava a hipótese de ter sido morta antes de entrar na piscina - além de comprovar o altíssimo nível alcoólico do sangue. Senhor Gengiva foi inocentado, e Veronica teve que ser enterrada em caixão lacrado.


Durante todo esse tempo, Brian não teve coragem de tirar o pano branco que cobria o espelho mágico de sua tia-avó. Aquele artefato era testemunha silenciosa de seu crime perfeito, pensava ele. Com o passar dos dias desenvolveu uma fobia grave, a ponto de nem olhar mais na direção do espelho. Só não o destruía pois a bruxa velha tinha escrito no grimório sobre a crença dos sete anos de azar. E ele tinha aprendido a acreditar na bruxa. Comprou uma TV de última geração para o quarto, na tentativa de esquecer aquele objeto antiquado encostado na parede, até a noite em que acordou ouvindo estranhos sons. Pancadas anônimas, surdas. Onde? Despertou completamente, olhando instintivamente para o relógio. 22:30hs: o "horário Veronica".

"Coincidência, imagine." Evitou pensar naquilo, mesmo sabendo a fonte das pancadas. Tentou abafar ligando a TV, mas o som ainda assim permanecia, vibrando em seus tímpanos, teimando em se fazer presente dentro do quarto. Pegou o telefone. Ligar para quem? Não teria coragem de contar aquilo à ninguém. Certamente só ele ouvia aqueles sons, e não queria passar por maluco nem despertar desconfiança.

"Calma Brian, calma. Vai passar." - pensou, fechando e abrindo as mãos em punho, nervoso.

Não passava. Sentou-se na cama, olhando para o artefato que o linho branco escondia. Às vezes os sons eram tão fortes que o tecido se mexia. Ignorar, se distrair. Não conseguia. Seu cérebro acusava cada pancada, um baque surdo que parecia... "NÃO!"

Aterrorizado, quis silenciar seu raciocínio. Antes que sua mente trabalhasse e lhe dissesse do que era aquele som, ele olhou para o grimório largado no criado-mudo. Folheou rapidamente as páginas antigas, amareladas, que falavam de coisas esquecidas. Crendices. Uma lenda falava que se um cadáver fosse refletido, o espelho ajudava o espírito a escapar. Percebeu que tinha feito leitura dinâmica, pulando várias partes importantes. Sua tia-avó escrevera que o espelho precisava continuar em família, que ela escolheria o membro mais afastado, homem e solteiro de preferência, para esconder os preciosos artefatos. Quando aparecesse na família uma mulher que descobrisse por si só os espelhos, seria digna para continuar a obra. Enfim Brian entendeu sua "herança". Continuou lendo e descobriu que não se podia destruir um espelho mágico, ao custo de perder a alma junto. Alma! Era a alma de Veronica batendo no espelho para sair, gritou-lhe sua mente.

"Oh Deus!" - ele não podia destruir a porta por onde ela entraria!

Os minutos passavam e nada acontecia além do som insistente das pancadas. O medo foi dando lugar à curiosidade, uma vontade incontrolável de olhar para o que se escondia sob o linho. Veronica. Não, não era Veronica. Mesmo se fosse, em que estado estaria? O filme antigo que a TV mostrava passou a lhe irritar, então ele o desligou, e ficou só escutando aquelas batidas do além. Suas pálpebras se mexiam, assustadas, a cada pancada. Encolheu-se na cama, o som aos poucos ditando as batidas de seu coração. Num rompante de raiva, pulou no chão e, sem raciocinar nem medir consequências, puxou o tecido que cobria a porta infernal.

O outro lado do outro espelho não estava lá. Algum familiar de Veronica devia ter se livrado dele, ou mesmo o quebrado.

"Alguém quebrou o outro espelho, será que isso libertou Veronica?"

Então as pancadas pararam, como se nunca tivessem ecoado de verdade. Ele sentiu-se seguro, aliviado. Não era nada.

Deixou escapar uma gargalhada da própria loucura. Achava mesmo que Veronica estaria ali, dentro do espelho? Analisou seu reflexo, estudando os dentes levemente amarelados pela nicotina quando percebeu um movimento pelo canto do olho. Atrás dele, um vulto aparecia na TV desligada. Reconheceu a face grotesca de olhos vazios, arregalados, os cabelos embaraçados, a boca esquisita abrindo e fechando, como que buscando ar.

Afastou-se do espelho lentamente, evitando ao máximo olhar para trás, procurando o controle remoto. Ligou a TV, e a afogada desapareceu entre os personagens do filme. Ele sentou-se na cama, tremendo, sabendo que era melhor continuar assistindo algo. A afogada voltaria na tela escura se ele desligasse o aparelho.

Sem as pancadas insistentes do começo da noite, Brian dormiu e mergulhou em um pesadelo, onde Veronica aparecia nua, o corpo outrora desejável agora violado pela autópsia. Ela abria a própria caixa torácica, arrancava um pulmão inchado de água e o forçava a comê-lo. Brian, sem conseguir resistir, mordia aquela coisa esponjosa, e uma água escurecida e cáustica descia por sua garganta.

Assim que a TV desligou automaticamente, ele acordou alarmado. Não teve coragem de olhar. Sabia que ela estava lá, agora um demônio que apareceria em qualquer superfície reflexiva. Levantou correndo para o banheiro. Sem coragem para acender a luz, e de olhos fechados para não enxergar o fantasma, ele cerrou o punho e deu um murro violento, quebrando o espelho da pia. E agora? Será que aguentava ficar no banheiro até o amanhecer? Veronica morreu antes do sol raiar, então quem sabe?

Mas... e a noite seguinte?

Com a mão doendo, Brian analisou suas opções, que não eram muitas. Pôs a cabeça na porta, esquadrinhando o quarto, até enxergar o vulto na tela da TV. Plasma. Widescreen, Full HD e os caralho. Agora era só mais espaço pra afogada mostrar sua expressão retorcida. Deus, o quanto ela gritaria se pudesse? Os olhos odiavam e as mãos buscavam por ele com a mesma determinação com que nadariam para fora de algum rio infernal.

"Quebre todos os espelhos." Brian não sabia se tinha pensado naquilo ou se a ideia aparecera em sua mente, vinda do mesmo criadouro do senhor Gengiva. Era um pensamento razoável, ela não teria mais como se manifestar, não? Num gesto desesperado, correu do banheiro e chutou a TV, derrubando-a. Pulou por sobre a tela despedaçada, chutando com mais força ainda o espelho da tia-avó, o começo de tudo. Os pequenos cacos choveram sobre ele. Suado e com o pé direito sangrando, Brian mancou de volta até o banheiro. No fim era isso: quebrar todos os espelhos que ela voltaria pro inferno de onde escapou.

Abriu a torneira da pia para lavar a mão cortada, e esfregou vigorosamente o rosto com água gelada. Conforme a água escorria pelo ralo misturada com sangue, seu raciocínio foi voltando. "Tudo errado". Não se pode quebrar espelhos ordinários, muito menos um espelho mágico. A velha escreveu essa advertência várias vezes no grimório. Pensava nisso, quando escutou um gorgolejar inumano, abafado, atrás de si. Seu corpo arrepiou-se com a presença da afogada, enfim liberta de sua prisão nos reflexos. Ela teria sua caudalosa vingança. Medroso, ele juntou toda sua pouca força de vontade e virou-se. Veronica estava lá. Os olhos mortos, buscando as feições dele, só encontravam medo. Brian gritou tarde demais, sem conseguir resistir ao derradeiro beijo daquela boca escancarada!


No dia seguinte, apenas um tabloide se interessou pela estória do homem que foi encontrado morto no banheiro. Aparentemente afogado em vômito, engasgado com uma estranha substância esponjosa, como se fosse pedaços de seu próprio pulmão.


Comentários do autor

"Os espelhos" foi escrito em 28.02.09.


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