Sistinas
Raízes de sangue
#45

Raízes de sangue

O que você vai ler agora é uma continuação do conto Mandrágora. Se ainda não o leu, agora é o melhor momento, para entender e desfrutar melhor dessa criatura.

Noite em Sistinas.

Em algum lugar da cidade esquecida por Deus, uma freira provoca um aborto violento. No mesmo instante, um vento forte sopra pelas muralhas do convento, como um suspiro doloroso de um anjo. Em meio à esse vento, alguma coisa com folhas grita, ansiosa, por entre as antigas árvores da floresta. Longe dali, um jovem faz o download de um vídeo chocante, sem saber que em poucos minutos assistirá a uma morte real.

E uma outra criatura - dessas que você pensa que não existe de verdade - sorri artificialmente.

Acredite, tudo isso está interligado. É apenas outra noite em Sistinas.


— Sempre quis saber... Por que você vai colocando os pedacinhos do bebê aqui do lado da cama, irmã?

A freira mais velha demorou uns cinco longos minutos para responder com uma voz neutra, quase sem vida:

— Não chame de bebê. O fato é que já morreram muitas irmãs de nossa ordem por descuido. Complicações graves depois do aborto. Quem fazia a curetagem do útero não prestava atenção direito, e deixava restos do feto lá dentro. Você tem que ir despedaçando e retirando, assim, veja...

A jovem não quis olhar diretamente para aquela vasilha rústica onde a matrona depositava os pedacinhos do pequeno ser humano condenado. Era uma imagem tão forte que ela simplesmente não queria correr o risco de engravidar. Por isso nunca conheceria o sexo masculino. Nunca se deitaria com um homem. Por isso também era uma das escolhidas da Madre Superiora.

— … e ir olhando pra ver se não fica nada lá dentro. Entendeu? Eu aprendi a fazer somente olhando.

— Achei que era uma crueldade desnecessária. Que bom que tem um motivo para isso.

— Meça suas palavras, menina! Claro que temos nossos motivos. Quanto atrevimento! Se não fosse tão protegida pela Madre, eu...

A porta se entreabriu nesse instante.

— … eu mesma lhe ensinaria boas maneiras! - sussurrou a matrona, já sabendo quem entraria naquele quarto, que estava tão quente e abafado quanto o inferno. A Madre ignorou a freira desfalecida na cama de pernas afastadas, e torceu o nariz para a quantidade de sangue desperdiçada. Voltou-se para as duas mulheres que conduziam o aborto:

— Você já foi mais cuidadosa, velha. Desde quando faz tanta sujeira assim?

— Desculpe Madre, é... essa menina que você pôs aqui de ajudante. Ela me incomoda com as piores perguntas.

— Quis que ela acompanhasse tudo. Hoje é a nossa pombinha que vai levar a oferenda para a floresta.

— Eu? Mas não estou pronta pra isso. - respondeu a jovem.

— Não é uma questão de prontidão. É de comprometimento. Não é, velha?

A matrona não respondeu. Apenas ergueu as mãos nuas com as palmas voltadas para cima, e sorriu para a Madre. Os dedos esqueléticos respingavam sangue e restos de placenta. A jovem - que até aquele momento imaginava que a velha não tinha dentes, pois nunca tinha presenciado um sorriso dela - olhou para a vasilha com os pedaços e falou:

— Espere senhora, tá faltando uma das mãos...


— É um truque, não é de verdade. Cadê a outra mão dele?

— Está amarrada também, querido. Se ele estivesse com as mãos livres, não acha que lutaria contra o sufocamento? - disse a moça do outro lado da tela do computador. Voz fria, meio que distante. Mas ele não percebeu isso. Estava excitado demais assistindo ao vídeo caseiro que ela lhe enviou.

No vídeo, uma mulher de corpo escultural cavalga um homem. Ela senta e vai mexendo sensualmente o quadril, até o homem encaixar todo seu membro nela. Dá pra ver a mão esquerda dele amarrada. A outra mão também está amarrada, segundo ela.

Sim, a cadela enviou um vídeo trepando com o namorado. E ela está controlando tudo na cena. Esticando a mão no mesmo ritmo em que senta no pau dele, ela alcança as calças e vai soltando o cinto. O homem resmunga alguma coisa, mas não se altera. Ela aumenta a velocidade da transa, rebolando ainda mais, e passa o cinto ao redor do pescoço dele.

— Assim, assim é bom demais! - diz o rapaz com as pupilas dilatadas grudadas na tela.

— Ah, você gosta assim?

— Sabe que eu gosto, sua safada. Você me achou num site de fetichismo. Estrangula ele, vai! Mostra pra ele.

— E você gosta do meu corpo?

— Eu amo seu corpo.

— Não sou gostosa?

— É sim. Bastante. Muito safada você.

— Eu gosto de safadeza.

— É claro que gosta! Mas por que você é assim?

— Nasci pra isso. Fui criada pra isso. Só me usaram pra isso.

No vídeo, ela já enlaçou o pescoço do homem, e está puxando o cinto. Cavalga de maneira selvagem, rápida, sem ritmo, quase desesperada. Seus seios pulam com os movimentos bruscos, apesar de não serem grandes. O homem força as amarras, mas suas mãos permanecem presas.

— Que viadinho, ele tá tentando se soltar!

— Você não tentaria?

— Claro que não, eu ia era explodir de porra dentro de você!

— Você não faz ideia do quanto sou viciada nisso. Não ia querer dentro de mim. Gosto de ver o homem gozar em meu rosto, meus seios...

— Não fala desse jeito que eu me acabo aqui. Quer me ver gozar na webcam?

— Não tenho o menor interesse em sexo virtual, querido. Saia de trás desse computador, vamos transar de verdade. Minha necessidade é real.

Dessa vez ele percebeu que a voz dela era tão fria quanto intimidadora. Mas achou que era por culpa da qualidade da conexão com a internet que distorcia o som:

— Você é bem direta, hein?

— Não sei fazer rodeios. Vou direto ao que me interessa. - então ela jogou a isca - E você, tá interessado? Se não me diga logo.

— Uau, claro que estou, mas... como faremos? Você não é de outra cidade?

— Nos encontraremos semana que vem, se você topar meu fetiche. Assistiu ao vídeo que te mandei até o fim?

Ele tinha pausado para conversar melhor com... "Como é mesmo o nome daquilo, ninfo... ninfomaníaca. É. É isso que essa puta é." Apertou novamente o play, excitado e ansioso. O homem agora tentava soltar desesperadamente as cordas, o rosto já lívido, sufocado. Alguns segundos depois, ele desmaiou e ela levantou-se, checando a própria vagina. A qualidade da gravação não deixava ver o esperma que respingava.

Silêncio do outro lado da tela.

No vídeo, ela apalpa o cacete do amante ainda ereto, e o aperta, colhendo as últimas gotas. Lambe lentamente os dedos, enquanto caminha até a câmera e a desliga. Stop.

— E aí, que achou?

— Ele está morto? - o rapaz pergunta, ligeiramente assustado. Principalmente com os olhos esquisitos da mulher do vídeo.

— Oh, claro que ele não está morto. Apenas apagou. Depois voltou cheio de gás! - ela sorriu. Tinha treinado aquele sorriso algumas vezes, até saber mostrá-lo de maneira convincente.

— Ah, sim, já ouvi muita gente falar que a volta, acordar depois da asfixia, dá uma sensação de euforia animal!

Outro sorriso. Ela treinara aquele sorriso até ter certeza de que convenceria os incautos de que Jerad ainda estava vivo e respirando.

— Você também me parece cheio de gás.

— Sim, sim. Claro que sou.

— Então vamos nos encontrar. Estou com sede.

— Te disse que sou casado, né? Não é tão fácil assim.

— Eu prefiro os casados. Que aí é apenas sexo casual.

Um dia antes, ela tinha mostrado o mesmo vídeo para um casal. E dois dias antes, ela tinha dito na webcam que preferia os solteiros, para um jovem cheio de espinhas. E quatro dias antes, disse a outro homem que preferia os mais experientes.

A única coisa que repetiu a todos eles foi: "Semana que vem chegarei em Sistinas, me dê um endereço pra eu te encontrar."


— Oi moça, pra onde tá indo?

— Sistinas.

— Entre, vou naquela direção. Dizem que essa maldita cidade tá sempre no nosso caminho, começo a acreditar.

A porta abriu, suave. Ela trajava um vestido comportado, conforme a temperatura da noite. O modelito era bem discreto, tirando o salto alto verde espalhafatoso que não combinava. O motorista não pode deixar de reparar na beleza daquelas pernas morenas. Antes de entrar, ela colocou um óculos escuro. Levava também um sobretudo, e o antebraço esquerdo era dominado por uma tatuagem muito vermelha, que envolvia o pulso e a mão, vazando entre seus dedos.

— Desculpa ter parado bem longe depois que você pediu carona. É que já é quase madrugada, tava meio cochilando no volante...

— Tudo bem. – a voz dela soou tão aveludada quanto a de uma atendente de tele-sexo.

Analisando por alguns segundos aquela mulher linda pedindo carona tarde da noite, o motorista chegou à conclusão de que ela poderia ser uma ladra ou estar fugindo de alguém, um marido ou pai ciumento, talvez. Apesar do rosto inocente e da roupa sóbria, ela cheirava à confusão. As lentes negras do óculos reforçavam essa ideia.

Após um silêncio constrangedor, ele tentou puxar algum assunto:

— Que tatuagem interessante essa sua, é uma flor?

Não era uma simples tatuagem. Era uma escarificação imposta por seu mestre Jerad - como um entalhe no tronco de uma árvore - uma lembrança sempre dolorida.

— É uma planta, uma Mandrágora. - ela respondeu.

— Ah... Nunca ouvi falar. - ele se desinteressou. Logo os dois caíram em silêncio de novo.

— Vamos fazer o seguinte... agora que você tá aqui dentro do meu carro quentinho, eu te levo pra Sistinas se me fizer ficar acordado.

— Claro. Eu te uso para conseguir uma carona, e em troca você usa meu sexo.

O homem tossiu, quase sem graça, com a melhor frase que já tinha ouvido na vida. Não era bem isso que tinha pensado. Quer dizer, TINHA pensado, mas não ASSIM, dessa maneira.

— Falando desse jeito você tira o romantismo da coisa, mas...

— Você não gosta de sexo? - ela pôs a mão na coxa dele.

Surpreso, o homem inclinou-se para o lado dela um pouco, afastando as pernas, deixando que ela corresse os dedos insinuantes pelo zíper da calça. Quando sentiu o hálito dela em seu membro, segurou firme o volante para não perder o controle do carro. Teve certeza que aquela mulher era confusão, então deveria aproveitar o máximo possível!


— Digamos que ele teve uma morte divertida, hein? Continua ereto!

O estômago de Nielsen embrulhou com aquela observação do seu colega investigador. Uma legista estava no local também. "Homens são porcos", ela teria dito, assim que chegaram à cena do crime: carro parado no acostamento, sem sinal de arrombamento, com seu motorista asfixiado pelo próprio cinto de segurança.

— Já vi essas coisas, os caras ficam se masturbando com uma corda, ou cinto, qualquer coisa. Aí antes do gozo eles apertam até quase o ponto do desmaio, e dizem que o orgasmo é muito mais poderoso assim. - disse outro policial. O jeito como ele falou "eles" parecia se referir a uma espécie à parte da humanidade: os doentes sexuais.

— Não teve um ator famoso das antigas que morreu disso, dia desses?

— Teve um cantor de sucesso dos anos 80 também. Os caras desmaiam antes de afrouxar o laço e se estrangulam, é patético.

— Ok, a cena está toda aí. - voltou a falar a legista, visivelmente desconfortável com o que tinha percebido - Mas não falta algo importante? Cadê o esperma todo do cara? Eu já vi cenas dessas antes. Geralmente o homem atinge o orgasmo, sujando tudo.

Nielsen reparou no esgar enojado dos lábios dela, enquanto falava "… sujando tudo".

— Do jeito que ele está animadinho, deveria ter respingos até no teto! - sorriu um dos policiais.

A legista respirou fundo com a piadinha, mas, no fundo, até entendia aqueles policiais. Tinham visto coisas grotescas demais na vida, então a maneira deles de encarar tudo sem perder a sanidade era fazendo graça com a situação. Realmente, para esse tipo de trabalho era preciso um certo grau de distanciamento.

— Chamamos isso de ereção pós-morte. - ela explicou - Como ele morreu nessa posição vertical, o coração deixou de bombear sangue pelo corpo todo. Então, a gravidade faz o resto, e o sangue fica literalmente empoçado nas regiões mais baixas do corpo.

— Certo, sem esperma. Talvez ele tenha sido abordado por uma prostituta, que o roubou e deixou nesse estado, indo embora antes de fazê-lo... vocês sabem... antes de terminar o serviço. É possível, não?

O outro investigador sorriu amarelo.

— Não. Na verdade, não, Nielsen. Ele não foi roubado. Sua carteira está aqui na minha mão, com documentos, dinheiro, cartões e cheques. Ele não é da cidade.

O laudo da perícia mais tarde confirmaria os medos de Nielsen. Não existia nenhum vestígio de uma segunda pessoa naquele carro. Nem impressões digitais, nem suor, sangue, fios de cabelo... nada. O homem tinha sido morto por um verdadeiro fantasma.

"Espero que fique só nesse." - ele pensou, quando deixava a cena do crime. Mas, no fundo, por experiência nas esquisitices de Sistinas, ele sabia que mais corpos apareceriam.


Dinheiro.

Ela devia ter pego mais desse tal "dinheiro", pois o de Jared acabara. Tinha percebido como as pessoas ficavam felizes com as tais notas esverdeadas. Trocavam todas as coisas por notas.

Como gengibre, por exemplo.

Foi difícil achar um lugar onde tivesse gengibre, e agora não tinha dinheiro para trocar pela raiz. Sem dinheiro, ela só tinha seu corpo para oferecer em troca. Mas seus encantos não funcionavam muito bem em outras mulheres, nem em pessoas velhas. Outra coisa que tinha percebido.

E era uma senhora que estava no caixa aquela noite.

— É gengibre que você quer? Por que está rodeando aí?

— Eu preciso muito dessa raiz, mas não tenho dinheiro.

— Sinto muito mocinha. Sem dinheiro vivo não posso lhe vender nada.

A estranha moça de sapatos verdes veio até ela. Olhar vidrado, esquisito. Olhava para as coisas como se tudo ao redor fosse uma grande novidade. A noite trazia consigo cada coisa...

"Está drogada. Ai meu Deus, melhor dar o que ela quer!" Tentou não deixar o medo que aqueles olhos pretos causavam embargar sua voz e falou:

— Olha, se precisa tanto assim do gengibre, pode pegar umas duas, três raízes. Mas pegue e vá embora. E não volte!

— E pra que eu voltaria? - ela respondeu calmamente enquanto escolhia alguns gengibres, fazendo-os desaparecer nos bolsos do sobretudo.

Tudo foi muito rápido. A estranha foi andando para trás até a porta, sem tirar os olhos da senhora. Então abriu as portas para a noite que garoava, e saiu apressada.

A senhora do caixa segurou a respiração até não vê-la mais. Assustada, pôs a mão no peito por uma repentina taquicardia, pegou o telefone e ligou para a polícia.


Na floresta já chovia mais forte. Três mulheres encapuzadas caminhavam debaixo da água que açoitava as árvores com finíssimas navalhas. A jovem freira, a Madre Superiora e a velha matrona. Três gerações de bruxas do convento, que andavam apressadas para um lugar específico, guiadas apenas pela fraca iluminação da lua.

— Está nervosa? Vai vê-la pela primeira vez.

— Não Madre. Estou é ansiosa. - respondeu a jovem, tremendo com o frio do ar noturno trazido pela chuva. No braço congelado trazia a vasilha com o feto despedaçado. A matrona ia na frente, caminhando em passos decididos, conhecedora que era do caminho maldito.

— Colocou nos ouvidos a cera mágica que te dei? É sua única proteção.

— Sim senhora. Como vocês a acharam, Madre?

— A velha conhece toda essa floresta que nos rodeia. E também sabe tirar as coisas dela. Sabe fazer todos os unguentos, filtros, emplastros. Já viu cada planta daqui, e não faz muito tempo que ela descobriu essa nova... - procurou a palavra certa - "espécie".

A matrona, sempre mal-humorada, olhou para trás, sem diminuir a passada:

— Quietas vocês duas. Não aborreçam as árvores com esse falatório.

As três não conversaram mais até chegar num local de mato fechado, um labirinto tortuoso que cheirava à morte. Um silêncio mortal pairava, a própria escuridão da floresta parecia prender a respiração ali. Raízes negras espalhadas se confundiam com o solo, vindas de um ponto no interior do labirinto de troncos e folhas.

A matrona fez uma reverência, sussurrando algo. Palavras antigas que o vento noturno levou por entre os troncos do lugar. Um silvo foi a resposta.

— Só ela vai entrar. - apontou o dedo esquelético para a freirinha - Preste muita atenção, criança. Você vai primeiro derramar o sangue em torno dela. Não se afobe, entre em sintonia, comungue com ela. Depois disso saberá onde depositar os restos do feto.

— Em troca ela vai lhe dar algumas raízes que são poderosíssimas. Traga para nós, é um ingrediente essencial e raro nos dias de hoje. - complementou a Madre.

— Colha-as com cuidado. Se você fizer algo errado e ela gritar, sua vida estará em risco, pombinha.

— Mas a cera nos ouvidos não...? - a freira gemeu baixinho. Queria perguntar, mas tinha medo das árvores ao redor escutarem.

— Não existe garantia de que funcionará. Nosso relacionamento com essa criatura está no começo, ainda estamos nos conhecendo, não é velha?

A matrona concordou com a cabeça. Não contaria sobre as outras freiras que morreram ali dentro, nem do horror que explodiu seus tímpanos e seus corações.

A jovem deu as costas para as duas mulheres, e adentrou aquela podridão verde. Foi caminhando cautelosamente, todos os sentidos voltados para o que se escondia ali. Reparou que a chuva de gotas pesadas tinha aumentado consideravelmente nos últimos minutos. Tropeçou numa grossa raiz e foi então que a VIU. Uma árvore enegrecida, retorcida, com um formato de tronco incomum. Era, sem dúvida, uma mandrágora, enterrada em plena floresta. Tinha formas femininas deformadas, era grosseira, e estava totalmente chamuscada. Metade do tronco estava lascado, tinha se perdido em pedaços de carvão.

A freira rodeou a criatura, sabendo que ela, apesar de imóvel, tinha pleno conhecimento de sua presença. Continuou andando calmamente à espera de um sinal, um indício, qualquer coisa. Quando seus olhos enfim se acostumaram com a pouca iluminação, conseguiu enxergar as órbitas negras e úmidas da árvore. Um olhar horrível que acompanhava todos os seus movimentos, sem demonstrar aparente hostilidade.

Mas que também não demonstrava nenhuma simpatia.

O terror aos poucos se apossou da jovem, por conta daqueles olhos. Seu corpo começou a tremer, querendo sair daquela presença maligna o mais depressa possível. Fez um gesto exagerado, demonstrando que ia despejar o sangue ao redor do tronco. A criatura não se mexeu. Apenas manteve o olhar fixo.

A jovem inclinou-se, virou a vasilha e foi soltando o sangue naquela terra imunda, andando devagar, evitando movimentos bruscos. As raízes se mexiam nesse instante, sedentas. Percebeu que não tinha tanto sangue assim para molhar todo o chão.

"E se não der para todas as raízes?"

Tentou dosar mais, controlar o nervosismo. Quando a vasilha molhada pela chuva meio que escorregou de suas mãos, ela deixou dois grandes pedaços do feto cair. Foi como quebrar um encanto, e os olhos negros da mandrágora se estreitaram.

— Não! - praguejou a Madre lá fora. A velha já cobria os ouvidos, precavida. Um gemido de agonia escapou dos lábios da jovem primeiro, e a árvore escancarou a boca disforme, gritando, atrasando por um segundo até mesmo a queda das gotas de chuva. A freira não soube o que ouviu, caindo morta antes mesmo de entender direito o poder mortal do grito da mandrágora. Alguns pedaços do feto espalham-se pelo chão.

— Maldita seja, desastrada! - resmungou a matrona - Vamos embora daqui logo, Madre!

Enquanto as duas corriam apressadas pela floresta, fugindo da árvore, a outra mandrágora despia-se na cidade. Andava nua pelas ruas desertas e encharcadas. Pisava descalça pelo asfalto, tomando seu revigorante banho de chuva, ansiosa por um encontro que já estava marcado anos atrás.


Nielsen desistiu de trabalhar por aquela noite quando o café passou a descer mais amargo que o normal.

— Vou para casa. Tudo certo por aqui?

— Tirando uma senhora que deu queixa de roubo de umas raízes de gengibre, nenhuma ocorrência.

— Raízes de gengibre...?

— Sim. Mandamos uma viatura pro local, eles analisaram as imagens que a câmera interna do estabelecimento registrou. Uma moça, provavelmente drogada. Pegou as raízes e saiu. Dá pra fumar ou cheirar esse troço?

— Eu é que não quero saber. Chega de rastrear fantasmas por hoje, preciso ir pra casa descansar.

— Essa chuva forte de madrugada é boa pra dormir. Boa noite.

"É o céu querendo lavar a imundície dessa cidade." - pensou Nielsen, enquanto deixava o distrito debaixo do temporal que caía.

Essa chuva só pararia quase 48 horas depois. Antes disso, ele ainda encontraria mais dois homens mortos, idades diferentes, em locais diferentes da cidade. Enforcados após o sexo, conforme a disposição dos móveis, objetos e roupas nas cenas dos crimes. Nada de fluídos, saliva, suor, sangue, fios de cabelo, restos de pele embaixo das unhas dos cadáveres. Nada. Nenhuma pista concreta da parceira sexual dos infelizes. A assassina. Nielsen já imaginava que era mulher, até pelo histórico sexual dos homens. Eles todos foram seduzidos e se encontraram com ela sim. E com a morte junto. Seria um fantasma?


Ela lavava sem pressa a raiz de Gengibre. Alcançou uma faca e começou a descascá-la. Por vezes olhava para trás, para o casal que estava sentado no balcão da cozinha.

A mandrágora estava ali por causa da mulher, sabia disso. Fisgou primeiro o marido numa rede social, onde ele lhe confessara o fetiche de transar com duas mulheres, mas que nunca tinha encontrado a companhia certa. Disse ainda que somente teria a liberação da esposa no dia em que achasse uma fêmea que agradasse a ela também. Ela lhe mandou algumas fotos bem sensuais. E lhe falou sobre a delícias do gengibre. Foi o suficiente para agradar aos dois:

— Bonita a casa de vocês. Vocês também são muito belos. - evitou empunhar a faca que usava na direção deles, um detalhe que poderia assustá-los.

— Obrigada. - a loira respondeu - Você também é muito bonita. Na verdade, deliciosa. Já tentou ser modelo?

— Eu não gosto dos meus olhos.

Estavam tão seduzidos com as curvas da mandrágora, que nem perceberam que ela ainda estava de óculos. Assim que a receberam na porta, pensaram que ela os usava apenas por discrição, já que não tinha jeito de garota de programa.

— Que tem eles?

Claro que ela não mostraria os olhos. Continuou descascando a raiz, e deixou as palavras escaparem da maneira mais casual possível:

— A cor. São pretos. Não gosto muito.

— Ora querida, não seja por isso. Tenho uma coleção de lentes que uso nas mais variadas ocasiões. Tenho muitas cores, posso te dar a que mais gostar. Um agrado meu.

— Lentes? - era a primeira vez que ouvia aquela palavra.

— Sim, venha. Vou te mostrar.

A mulher usava apenas uma calcinha e um avental de doméstica por cima. Não era um avental de verdade, mas sim parte de alguma fantasia de sex shop. Tinha um corpo muito bonito para sua idade, já que não era nenhuma mocinha. Tanto que nem disfarçava os olhares nas carnes durinhas da mandrágora. As pernas eram lisas, sem marcas, bonitas mesmo, mas terminando em tornozelos muito finos. Os seios rosáceos e macios estavam ligeiramente caídos, por conta do tamanho um pouco exagerado. "Mês que vem vou colocar uma prótese de silicone e deixá-los empinadinhos como os seus", confidenciou à sua nova e misteriosa amiga.

— Essa azul fica artificial em você. Coloque a verde.

E ela sumiu novamente pro banheiro, colocando a lente verde. E seus olhos ficaram excepcionalmente chamativos.

— Meu Deus, você é a criatura mais bela que já vi na vida. Tire a roupa, agora. Não estou aguentando. Meu marido estava certo sobre você, nós a queremos.

A mulher investiu, soltando a alça do vestido simples da mandrágora. Encostou os lábios nos dela, e a beijou ardorosamente. Depois desceu lambendo seu pescoço.

— Você tem cheiro de flores. Que fragrância fresca, gostosa. Menina, você é um espetáculo. Acho que nem vou querer dividi-la com o maridão.

— Vamos precisar dele. E tem o gengibre...

— Pra que serve o gengibre mesmo? - a esposa sorriu.

— Prefiro mostrar do que falar.

As duas voltaram a cozinha sorridentes, abraçadas. O marido ainda estava vestido, bebendo um drink para relaxar. Apesar daquela morena linda (um belo contraste com sua esposa loira branquela) parecer ter saído de um sonho, não estava acostumado com aquela situação, mesmo a tendo imaginado várias vezes em suas fantasias. Em suas masturbações.

A mandrágora passou por ele e roubou seu copo. Depositou-o na bancada, ao lado dela. Entre um gole e outro, terminou de descascar a raiz e se entregou a tarefa de esculpi-la no formato de um pênis, com uma base onde podia manusear a peça. Apontou o falo de gengibre na direção da loira e piscou para ela, com seus novos e provocativos olhos verdes.

Foi a deixa final para o casal. Ela ajoelhou-se e começou a tirar a calça dele. O homem, olhando fixamente para a mandrágora, desabotoava a camisa que ainda vestia. Aos poucos os músculos dele apareceram, libertos da roupa. Era forte, pouco acima da média, mas talvez menos musculoso que Jared. Ela não precisaria se preocupar com a força dele, afinal.

Eles estavam no papo.

Alguns minutos depois e ela estava deitada no tapete da sala. A loira estava por cima, sendo vigorosamente penetrada pelo marido. As duas se beijavam no ritmo que as bombadas permitiam. A mulher nunca tinha gostado tanto de uma língua feminina. Quando o marido a segurou pelos cabelos, colocando mais força na foda, sentiu a morena sugando seus seios.

A primeira gozada veio fácil assim, pensou até que estava urinando, assustada do modo como estava molhada. O pau do marido se enterrava nela cada vez mais fundo, mas ele se esforçava para segurar. Não podia entregar os pontos ainda, queria gozar na morena.

A mandrágora sabia disso. Também o queria. E queria mais ainda seu esperma. Disfarçava muito bem enquanto chupava os mamilos da mulher dele.

Com um movimento rápido do punho, ele enroscou a mão direita nos cabelos louros da mulher, puxando, como a rédea de uma égua selvagem. Puxava cada vez mais e mais para si, arqueando as costas dela. Embaixo dos dois, a mandrágora apoiava-se nos cotovelos, e o encarava. Mexia os lábios, provocando-o. Como se ele estivesse fodendo com ela, e não a esposa. O homem suava, se dividindo entre aproveitar a situação ou prender mais um pouco sua gozada.

— Você a quer também, não é seu puto? Fala que o quanto você quer foder essa vaquinha. Pega ela, esfola ela como você me esfolou!

O homem, arfando, pediu uma camisinha. A mandrágora não gostou. Sinal de que ele teria que gozar NELA, pois se gozasse com a esposa, todo seu fluído ficaria dentro da vagina da mulher. A loira rasgou a embalagem, tirou o preservativo e o colocou no membro pulsante do marido. Ele a empurrou de lado, de maneira até desajeitada, enquanto a morena se abria toda para recebê-lo. Estava molhadinha já, apesar de ser um pouco fria, bem diferente do forno que queimava dentro de sua esposa. Foi entrando devagar, curtindo a penetração. A moça era mesmo muito gostosa, e enlaçou seu pescoço com os braços e passou as pernas por sua cintura, convidando-o a entrar mais.

— Não goza nela. Não goza dentro. Goza na gente. Quero ver, quero me lambuzar! - a mulher ia dizendo, entre um gemido e outro, enquanto massageava as costas dele.

A mandrágora tinha hipnotizado o homem. Estava literalmente entregue. Se ela parasse a transa naquele momento e pedisse sua vida, ele a daria. Rostos colados, se encarando profundamente, dava até a impressão que ele enxergava os estranhos olhos negros que estavam por baixo das lentes verdes. A respiração forte, os músculos retesados, o coração forte dele bombeando tudo o que tinha para ela. Eram um só naquele instante.

Refeita do orgasmo e incomodada com a cena que via, a mulher puxou o rosto dele pelo queixo, obrigando-a olhar pra ela:

— Não fode com ela, seu filho da puta! É comigo. Come ela, mas pensa em mim! Sou eu quem você tá comendo! É minha boceta que tá engolindo seu pau gostoso!

Era muito difícil pra ele raciocinar naquele momento. Sabia que a esposa falava sério, mas aquelas palavras fortes o excitaram ainda mais, e ele foi chegando perto, mais perto, e a mandrágora soltou o gemido mais excitante que ele já tinha ouvido numa trepada. Uma mistura perversa de "tá me machucando" com "tá gostoso, mete mais". E ele não se segurou, soltando enfim toda sua porra dentro da camisinha.

— Puta... meeeeeeeeeeerdaahhhhhhhhhhhhhh! - seus músculos se descontrolaram, ele enroscou as pernas vigorosamente na sua amante, que também se esticava debaixo dele, lânguida. Não parecia ter gozado. "Foda-se!" - ele pensou, tombando para o lado, buscando descanso no tapete felpudo. Seu membro amolecia dentro da camisinha. Antes que vazasse, ele tirou e deu um nó no preservativo.

— Olha quanta... Você esvaziou o saco nela, seu... seu... - a mulher, irritada, tentava controlar sua crise de ciúmes.

— Preciso ir ao banheiro. Tenho uma surpresa para os dois quando voltar. – a mandrágora levantou-se apressada. O casal nem percebeu que ela levou a camisinha junto.

Quando voltou, os dois trocavam beijos e carícias. Ela massageava o membro dele, querendo outra ereção.

— Só para você saber, espertinha... Ele não vai mais meter em você hoje! Mas como não quero estragar todo o clima, mostra logo pra gente pra que serve o gengibre.

A mandrágora dirigiu-se até a bancada, onde a raiz estava numa tigela com água. Voltou para perto dos dois. O efeito da sua nudez era nítido no homem. Ele já estava ereto novamente, acompanhando todos os movimentos dela com o olhar.

— Eu vou colocar isso aqui no seu rabinho, querida. – eram essas palavras exatas que Jared usava nessa ocasião. A mesma entonação.

— Eu não curto anal, queridinha. - a loura respondeu, ríspida.

— Ah, mas a partir de hoje vai passar a curtir. Acredite. - retirou a raiz molhada da tigela, e lhe mostrou - Isso aqui vai te fazer implorar pro seu macho enfiar logo.

Relutante, a mulher se apoiou no sofá, expondo-se para o marido. Ele correu os dedos entre as nádegas dela, curioso com o que a morena tinha dito. Desceu os dedos para a vagina, que ainda estava ligeiramente úmida pelo orgasmo de minutos antes. O cheiro do sexo dela era forte, perto do aroma suave da mandrágora.

— Isso, afaste as nádegas dela. Eu vou enfiar devagar, querida. - ela exagerou propositalmente na última palavra.

Sem costume de atividade sexual, o ânus da mulher era bem resistente à entrada da raiz de gengibre. Lubrificar não era opção, senão cortaria todo o efeito. Ela ia empurrando devagar, encaixando, enquanto o homem, com a mão por baixo, masturbava a esposa, para fazê-la relaxar a musculatura e permitir a invasão. Em certo ponto, a raiz inteira deslizou para dentro da mulher, só ficando a base para fora.

— Seus putos, minhas pregas estão... ohhhhhhhhhh - a mulher arregalou os olhos, e agarrou os próprios cabelos, enlouquecendo. - Parece que um gênio malvado está soprando bem no meu rabo! É bommmmmmmmmm....

A mandrágora sabia a sensação de frescor que invadia com a raiz. Em questão de minutos a sensação mudava para...

— Tá queimando, tira, tira!

O marido, entendendo o jogo, segura as duas mãos da esposa contra o sofá.

— Não, não por favor, queima... queima muito! Tirahhhhhhhhhh! Tá ardendo!!

Os músculos dela se contraiam em torno do gengibre, e o calor aumentava.

— Agora eu vou tirar, devagar.

— Sim, sim, sim! Tira! Por favor!

— … e seu marido vai penetrar assim que eu tirar a raiz de você.

— Sim, coloca logo, vai, vai!

Depois de uns minutos o gengibre queimava muito, mas agora ela já gostava da sensação. Não estava mais incomodada, tanto que o marido ainda segurava suas mãos, mas ela não tentava mais se libertar. Aceitou resignada mesmo quando ele montou nela, enfiando todo o cacete de uma vez. Até mesmo se mexia para ajudá-lo a se encaixar melhor no seu orifício incandescente.

— Que sensação boa, vai, mete, mais, tudo, quero tudo! Me dá o que é meu, só meu, só meu, só meu... vai, vai, vai... apaga meu fogo!

Ela ia falando espaçadamente, conforme o ritmo das estocadas. Os dois se concentraram no ato, ele bufando, investindo pra cima dela com toda a força dos músculos das pernas.

— Fode, come com força, é seu, nunca dei antes, era virgem agora é seu, aproveita, vai, mete, mete, mete, mete, issooooooooo!

Aproximando-se por trás, a mandrágora colocou a mão macia no ombro do homem. O gesto pareceu enfurecê-lo, ele foi ao limite da sua força, estocando ainda mais forte as nádegas da loura. A morena pegou a camisa do homem no chão e improvisou para ele uma venda, prendendo firmemente sua cabeça, escondendo seus olhos e bloqueando totalmente sua visão.

A esposa de quatro, literalmente agarrada ao sofá, jogava-se de encontro a ele, a sensação de queimação sendo sobreposta pela empolgação. Deu uma última olhada para trás, vendo o marido com a cabeça toda enrolada na camisa, e sorriu para a mandrágora. "Você, sua louquinha, vadia... Adoramos seus joguinhos!"

O homem, sem enxergar nada, era apenas tato. Enlouquecido de tesão, continuou metendo, querendo muito gozar. Ouvia os gemidos débeis, engasgados, de sua esposa. O quadril dela tremia convulsivamente agora, de maneira estranha e até desordenada - "deve estar gozando" - enquanto ele bombava com mais firmeza, segurando-a contra o sofá. Seu pau, enterrado até a base dentro daquele buraquinho apertado que o comprimia, não o deixava perceber que a camisa em seu rosto estava tão amarrada que ele tinha até certa dificuldade para respirar, ofegante.

Sentiu um golpe fortíssimo nas costelas, que lhe tirou ainda mais o ar. Uma joelhada. A mandrágora laçou seu pescoço com o cinto, puxando com toda força para trás. Pego de surpresa, o homem tentou desesperadamente se libertar, mas era impossível. Tentou se lembrar de suas (poucas) aulas de jiu-jitsu, de como fazer para escapar de uma situação de estrangulamento como aquela. Entrou em pânico. Não conseguia mais controlar a própria musculatura, enquanto seu esperma respingava.

A mandrágora apertou com toda sua força o cinto, a tira prestes a cortar a carne do pescoço do homem. Mesmo depois que ele parou de se mexer, ela ainda apertou por uns bons dois minutos. Olhou ao redor, a loura também morta, ainda na última posição do sexo, as mãos desesperadas tentando estancar o sangue da garganta cortada. Usara nela a mesma faca com que descascou o gengibre, um corte perfeito.

Antes de ir embora, ela ainda colheu tranquilamente o último gozo do homem, deixando os dois cadáveres tombados no sofá encharcado de sangue.


— Está me dizendo que isso é o quê?

A legista segurou aquele pedaço de qualquer coisa com as pontas dos dedos enluvados, e repetiu.

— É gengibre.

— É claro que é! - Nielsen riu, atravessando correndo o quarto. Não tinha mais nada pra fazer ali.

Horas mais tarde, no distrito, ele estava assistindo à gravação da câmera interna de segurança. Uma moça permanece parada perto de um determinado produto. A dona do estabelecimento chama sua atenção, e elas conversam algo. A moça corre os olhos por todo o lugar, como se procurasse algo. Dá pra ver seu rosto nitidamente nesse momento, o olhar ansioso, esquisito. Ela então avança novamente para os gengibres, pega alguns e coloca nos bolsos, indo embora logo depois. Aquele rosto bonito era de uma assassina em série?

Algum tempo mais tarde uma viatura apreendeu dois viciados nas ruas, que alegavam ter visto "uma mulher pelada tomando banho de chuva". Juraram por Jah, mas não conseguiram dizer de onde ela veio, nem pra onde foi. Discutiam entre si de tão drogados que estavam:

— E ela tinha uma folha de maconha tatuada no braço!

— Não era uma folha de maconha! Era... outra coisa.

Nielsen ia montando peça por peça do quebra-cabeça, quando sua linha de raciocínio foi cortada pelo toque do celular:

— O perito achou um vídeo interessante no computador de uma das vítimas da sua fantasma. É um vídeo pornô caseiro, com um estrangulamento REAL no final. É quente, Nielsen! A mulher é um animal!

Quase desacreditou na sua sorte. Antes do vídeo ser encaminhado do perito para o distrito, já sabia que a mulher do vídeo de estrangulamento seria a mesma do roubo do gengibre. Assistiu só para ter certeza. Ainda assim, estava na estaca zero. Quem era ela? Por que fazia aquilo, os estrangulamentos?


A resposta para todas as questões de Nielsen naquele momento subia por uma trilha na montanha, em direção à floresta. Precisava reencontrar sua irmã de sangue. A sobrevivente, que ela e seu mestre Jared deixaram para trás no incêndio do nascimento delas. Os anos se passaram, mas ela nunca aceitara de fato que tinha abandonado sua irmã. As plantas possuem conexões antigas, inexplicáveis. Ambas sabiam, mesmo à distância, que a outra estava viva. Tinha pesadelos com sua irmã-árvore pegando fogo com a estufa de Jared. Isso nas raras vezes em que dormia, já que quase não precisava descansar.

Enquanto caminhava, lembrava de seu início. De sua "infância", por assim dizer. Era como uma criança, e não entendia direito como as coisas funcionavam. Ela não tinha um nome. Morava só com Jared, que nunca a chamou por nome algum. Ele sempre falava em voz de comando, então ela desconhecia sutilezas como a expressão "por favor", por exemplo. Nunca tinha respondido "obrigada" na vida.

Então descobriu que a ela foi dada a vida a partir da morte. Também devido a essas mortes - todas prostitutas - sua libido sempre foi acima do normal. Um dia encontrou os diários de criação de Jared, e entendeu o poder mítico que o sêmen do enforcado tem em sua espécie. Feita de mulheres assassinadas, era meio óbvio que herdaria alguma tendência homicida.

Planejou tudo, atraindo seu mestre e criador para uma armadilha sexual. "Você me deu a vida. Agora darei a sua à minha irmã."

Ela o enforcou e pegou seu esperma, agora mágico. Procurou por outros homens, também os enforcou durante o êxtase sexual e guardou seus fluídos. Quando achou que tinha o suficiente, parou de matar.

Era nisso que pensava quando sentiu o fedor de sangue podre, que nem mesmo a chuva conseguiu lavar. À beira da mata fechada, ela foi tocando as folhas, sentindo as impressões que sua irmã-árvore emanava. Caminhando lentamente com a mão esticada, tateando as plantas ao redor, ela ia percebendo todos os acontecimentos que tiveram lugar ali. Os gritos, as freiras tentando lascar as raízes da árvore com facões, às vezes machadinhas. Pedaços de fetos, de bebês natimortos, e cadáveres de mulheres já adultas espalhados por todo o chão.

— Verdes...?

A mandrágora encolheu-se ao ouvir a voz gutural da árvore. Que era no que sua irmã tinha se transformado, ali no meio daquela plantação de morte. As carnes das vítimas já tinham sido consumidas, mas nas poças avermelhadas ainda boiavam retalhos de roupas, além de diversas vasilhas e recipientes.

— Seus olhos... agora... são verdes?

A mandrágora enfim olhou para o monstro de madeira enegrecida e chamuscada. O que sobrava da parte humana nela - a herança de Jerad - já tinha apodrecido há tempos. Ela tinha enterrado suas raízes ali e sobrevivia embebida com sangue de bebês abortados que as freiras lhe traziam. Comia carne morta também, um hábito horrível que adquiriu com o tempo.

— Os homens fabricam olhos da cor que querem agora. Meus olhos pretos chamavam muita atenção. - a mandrágora respondeu. A conversa começou como uma brisa que sopra forte na floresta.

— Que marca horrível... é essa?

— Um entalhe. Jared fez isso em mim. Pra me marcar como dele.

— E você permitiu. Gritasse... com ele!

— Não tenho seu poder, irmã. Acho que é por não ter raízes, como você.

— Por que... veio... na minha casa?

Não sabia a resposta para aquela pergunta: "Pensei em ficar com você."

— Não é... bem-vinda... aqui. - a boca, fonte dos gritos mortais, retorceu.

— Eu poderia me enterrar por aqui. Não encontrei sentido na vida entre os homens. Fiz coisas...

— Não ouse... enterrar-se... ao meu lado. Eu te mato. Minhas raízes... são antigas... mais fortes que as suas jamais serão!

— Eu faria isso por você, pra ficar ao seu lado.

— Você fugiu de lá... com o mestre... poderia... ter me salvado...

— Eu estava assustada! Tinha fogo por toda parte e...

— Fogo. Sim, tinha fogo... que me queimou... incinerou minha beleza... e transformou meus sentimentos... em fumaça negra!

As folhas tinham contado a ela a história da árvore. Em como ela chegara ali, queimada, mutilada, se arrastando.

— Saia daqui!

— Não, eu posso te ajudar. De alguma maneira. Eu preciso.

— Não preciso... de você.

— As mulheres não trarão crianças para sempre. Elas querem suas raízes em troca. E se continuar a matá-las, chegará o dia que elas queimarão você.

— Elas não... nunca...

— Eu posso trazer tudo o que precisa. Posso alimentar você.

As raízes da árvore se mexeram na terra.

— Ou você pode beber isso, e se levantar daí, e ir comigo.

— Como? - as órbitas negras da árvore se fixaram no frasco que a mandrágora trazia.

— É o fluído mágico dos enforcados. Enforquei o mestre por ele. Vai curar você.

— O mestre... está morto?

A mandrágora sorriu, afirmativamente:

— E tem uma enorme cidade perto daqui, esperando por nós. Tanto sangue, irmã.

As raízes sedentas se agitaram de novo, dessa vez com mais força.


Na enorme cidade perto dali, a mesa de Nielsen estava abarrotada de fotos da mandrágora; ampliações dos vídeos do estrangulamento e do "roubo do gengibre" - era o que estava escrito na etiqueta. Um mapa na parede mostrava todas as ocorrências, começando com o infeliz enforcado no carro, na entrada de Sistinas. Os crimes não tinham nenhum padrão geográfico, não davam nenhuma pista. Mas o investigador estava cada vez mais pronto pra ela. E a pegaria.

Perdeu a conta de quantas vezes assistiu ao vídeo do estrangulamento. Conhecia cada centímetro do corpo da assassina. Sua tatuagem.

Um corpo daqueles excitaria qualquer um, então não se culpou nem por um segundo quando também se viu atraído sexualmente por ela. Antes de deixar a sala e ir dormir, examinou mais uma vez o rosto da mandrágora.

Provavelmente sonharia com ela naquela noite. E em muitas outras seguintes.


Comentários do autor

"Raízes de sangue" - continuação do conto Mandrágora - tem uma das MELHORES introduções que já escrevi.


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