"Se alguma criatura incorpórea e invisível (um anjo) for negligente, gradualmente descerá aos níveis inferiores e assumirá um corpo. A espécie de corpo que passará a ter dependerá do lugar em que cair. Assim, assumirá inicialmente um corpo etérico; depois, um aéreo. À medida que se aproximar mais da Terra, sua forma tornar-se-á cada vez mais rude, até adquirir a consistência da carne humana."
Orígenes de Alexandria (186-255 d.C.)
#21
Reveillon
A semana de Natal passou rápida. Na verdade, foi mais pela euforia da banda Erotasia. Lewd estava visivelmente satisfeito, assim como Caiaphas. Estavam todos sentados na escadaria, conversando sobre como foi o show que enfim os revelou:
— Me lembro das luzes se apagando... Quando tomamos nossas posições no palco, a porra dos cabos da minha guitarra estavam enroscados, e tive que me agachar para desembaraçar tudo aquilo. Putz, que sufoco... - começou Luna, enquanto tomava um gole no gargalo da garrafa de vinho barato.
— O Lewd olhava para todo mundo, um olhar raivoso, sombrio... Caiaphas estava inclinado sobre os teclados, e segundos antes de começarmos a tocar ele trocou um olhar comigo. Me passou tranquilidade, eu estava tenso com o nosso atraso, mas deu tudo certo! - continuou Jörg, como se estivesse dando sua contribuição num depoimento.
Luna passou a garrafa de vinho ao Lewd, que deu um gole e começou a falar:
— Não pude deixar de notar como Luna tocava. Parabéns, você mais uma vez fez uma verdadeira performance. Impressionou a todos, essa é a verdade. Os indianos já diziam que se uma pessoa possui grande força interior e personalidade forte, ela pode sublimar sua energia sexual num instrumento musical. E foi o que você fez...
Marian estava com eles, já que sempre comparecia aos shows, sentia-se como parte daquilo tudo. Mas não gostava de Luna, a guitarrista da banda. Nunca se deram bem. Claro que reconhecia que a mulher, a mais velha da turma por sinal, tinha talento e sensualidade de sobra, que ela usava muito bem, mas não queria ficar ouvindo aquele tipo de elogio. Nem percebeu que fez uma cara estranha, quando recebeu das mãos do Lewd a garrafa de vinho...
— É, foi um show e tanto. Eu me emocionei com vocês. - disse Marian, passando o vinho de propósito para Luna, após beber. A guitarrista deu um olhar cínico, e limpou discretamente o gargalo da garrafa antes de encostar os lábios. Clima pesado.
Caiaphas percebeu aquilo, já que Lewd parecia estar longe, ou era muito desligado para esses detalhes. "Um dia esse cara vai perder a Marian, e eu estarei aqui."
Era um clube de swingers, troca de casais. Mas para Jasmine e seu vampiro era um leilão de carne. Estavam ali para escolher um par de mortais para saciar a sede eterna de sexo e sangue de ambos. Agora acompanhavam uma brincadeira muito interessante. As mulheres estavam vendadas e trancadas numa sala, com pequenos orifícios nas paredes. Em cada um desses orifícios um homem colocava seu pau duro, para a apreciação das mulheres. As que se agradavam com o aspecto, espessura, cheiro e gosto podia abocanhar, chupar e mamar à vontade. Jasmine não quis participar, e ficava observando excitadíssima. Contando, tinha sete mulheres. E nove membros duríssimos estavam expostos nos orifícios.
Das sete, uma ruiva de lábios grossos e peitos enormes, procurava avidamente e abocanhava todos os cacetes que podia. Se revezava sem pudor algum, e era tão excitante observá-la, que um dos homens gozou muito só de sentir o calor da boca quando se aproximou do pau dele. O vampiro se impressionou, pois nunca tinha visto um cara gozar sem nenhum contato antes, mas a ruiva atiçava muito bem, brincava, lambia devagar e depois engolia jogando a cabeça com força para frente, num vaivém frenético, com selvageria até, e era impossível segurar a vontade de inundar aquela boquinha...
— Eu quero essa mamando em mim hoje, Jasmine. - disse o vampiro.
— Vamos esperar ela escolher um parceiro, e atacamos os dois. Mas não quero que se demore molhando essa vadia. Hoje temos outro casal para caçar, não se esqueça.
O vampiro resmungou algo, fez cara feia, e continuou observando a mulher que agora mamava no sexto pau consecutivo. Após mais alguns minutos de chupação geral, ela conseguiu o que a dona do lugar registrou como recorde. Sete caras gozaram no rosto dela. E os seres da noite levaram tanto a ruiva quanto seu parceiro para um lugar mais aconchegante.
O começo da madrugada prometia. Jasmine já estava nua, seu corpo ainda guardava o frescor de seus dias como humana, e não tinha aquele aspecto esguio e frio de uma vampira. O homem era um motoqueiro, e sua mulher era a ruiva de lábios perigosos, que o vampiro tanto gostou. Seria uma trepada e tanto...
Jasmine se maravilhou com o motoqueiro. Ele tinha aspecto de drogado, mas tinha um enorme volume por baixo da calça. Curiosa, ela soltou o cinto e abriu o zíper. Saltou para fora um membro enorme, meio rígido e muito grosso. O vampiro enquanto isso atacava a ruiva, ignorando o sorriso encantado de Jasmine, que apreciava a poucos centímetros do rosto a glande arroxeada de tesão. Nesse momento a vampira lembrou de todas as fodas de sua vida, mas nunca tinha visto um cacete que ao menos se aproximasse daquele. Entendeu o porquê da ruiva ser uma perita em sexo oral. Ela também se acabaria dia e noite se tivesse um homem daqueles em sua cama.
— Já que gostou tanto, por que não abocanha logo?
Jasmine adorou o tom de comando dele, apesar do coitado nem imaginar que morreria logo após a trepada. Abocanhou com muito gosto, e ficou sentindo o cheiro do suor que tanto a excitava, e de vez em quando o beijava. Uma gota molhou sua língua, lhe dando uma ideia do gosto do esperma dele.
Já a ruiva estava ajoelhada na beirada da cama, também com o pau do vampiro na boca. Era viciada em sexo oral. Ficou ali por muitos e muitos minutos chupando, ora devagar, ora rápido. Fazia pressão com os lábios grossos, depois lambia, mordia, brincava, e o engolia todo. O vampiro estava indo à loucura, resmungando como a boquinha dela era gostosa, úmida e quente.
Jasmine percebia o membro do motoqueiro pulsando e latejando, e com sua boca pequena não conseguia abocanhá-lo todo. Então ficava acariciando a cabeçona roxa e o freio com linguadas rápidas. Quando sentiu que o cara estava quase para gozar, parou de lamber. Ele segurou forte o pescoço dela, forçando. Jasmine foi obrigada a engolir muita porra, pois foram saindo jatos poderosos, o primeiro foi lá no fundo da sua garganta, já o segundo e o terceiro ela aparou com a língua. Detestou aquilo, sentiu-se humilhada. E hoje em dia ninguém podia humilhar a vampira. Perdeu todo o tesão nele, e agora só queria matá-lo.
A ruiva estava masturbando o vampiro, e também acariciava levemente as bolas dele. De vez em quando passava as unhas bem feitas pelo saco, e ele até se arrepiaria com a sensação, se ainda fosse humano, claro. "Continue", pediu, quando ela parou de chupar.
— Esporra logo, tesão. Quero sentir seu gosto. Meu marido já melou sua putinha... - dizendo isso, a ruiva abraçou a glande dele com os lábios, e começou a subir e descer a boca morna, forçando, apertando.
Jasmine correu para o banheiro, e cuspiu. A porra dele era muito espessa, viscosa. Jogou para fora tudo o que o motoqueiro tinha gozado em sua boca. Este, indignado, levantou-se da cama e foi atrás dela.
— Ei! Qualé sua puta? Mulher nenhuma cospe na minha frente. Você tava louca pelo meu pau. Quando enchi sua boquinha duvido que você não tenha ficado molhadi...
Jasmine, num acesso de fúria, pulou no pescoço dele, e nem o deixou terminar a frase. Mordeu com tanta força que o matou no mesmo instante. Tanto o vampiro quanto à ruiva se surpreenderam com o acesso de raiva dela.
— Seu filho da puta! Ninguém me obriga a beber porra! Nem mesmo você, tá se achando, é? - gritava Jasmine, enquanto afundava mais e mais os dentes na carne do pescoço dele. O sangue tingiu o chão e as paredes.
— Socorro! - gritou a ruiva. Levantou-se e tentou correr, mas tomou um puxão no braço, e se desequilibrou. Caiu pesadamente na cama, tentou olhar para seu marido, mas só conseguia ver em câmera lenta a vampira dilacerando as carnes dele. Começou a chorar, e então foi dominada. O vampiro montou, colocou os joelhos em cima dos ombros dela, e forçou a entrada do pau duro na boca. Ela gemia e chorava, mas por fim teve seus lábios abertos e sabia que não podia cerrar os dentes. Teve essa certeza assim que viu os caninos dele e os olhos vermelhos. Teve que chupar, sem escolha.
O vampiro começou a enfiar com força. Exagerava, segurando-a pela nuca, de maneira que ela nem se mexer podia. Ele usou sua boca como faria com seu sexo, fodendo com a mesma avidez. Assim como o motoqueiro, também gozou muito. Ela fechou os olhos, e as lágrimas corriam fartas. Quando engasgou, ele tirou o pau e deixou o esperma molhar também o rosto da ruiva.
Jasmine, totalmente molhada de sangue, chegou até os dois. Lambeu de leve a mistura de lágrimas e esperma do rosto da mulher, e mordeu seu pescoço. Já o vampiro, quando viu que a vítima morreria, desceu para sua virilha, ergueu e abriu as pernas da mulher, e cravou os dentes nas carnes macias das coxas dela, que gemeu por uns instantes, mas logo morreu...
Os dois vampiros ainda transaram ao lado do corpo da ruiva chupadora. Porém, durante o ato ele percebeu que Jasmine ainda estava irritada. Quis saber o porquê.
— Esse cara só piorou o meu humor! Não me force a engolir o que não quero! Me lembrou um ex-namorado, era tão bem-dotado quanto viciado em cocaína. Tinha ereções prolongadas, porém doloridas. Eu era obrigada a fazer tudo o que ele queria e...
Parou de falar, olhando para o teto. Então explodiu de novo:
— Eu quero pegar o Lewd agora! Eu quero seduzi-lo, mordê-lo, e também chupar todo seu sangue! Você vem comigo? - ela desafiou.
— Agora? Ok, vamos, mas será que ele e Marian estarão juntos, como combinamos?
Foi Jörg quem se levantou primeiro:
— Bem... a conversa tá boa, mas amanhã, o primeiro dia do novo ano, também é dia de ensaiar, e o vinho acabou. Precisamos estar afiados para tocar no Princess of the Night! Eu vou dormir, vejo vocês mais tarde.
— Também vou andando. Mas não se preocupe. Depois do show no Princess, teremos grana para muito mais que vinho! - sorriu Caiaphas. - Boa madrugada para vocês.
— Esperem, também vou! Até mais tarde pombinhos. - despediu-se Luna, deixando Lewd e Marian sentados ainda na escadaria. - Nos vemos no ensaio, ok? E não se atrase!
O baixista acenou e ficou acompanhando os três sumirem na noite. "Ano novo, espero que venha também a tão sonhada vida nova" - pensou Lewd, sem imaginar o quanto estava certo em relação a isso.
Sentiu a doce brisa noturna, e os cabelos esvoaçantes de Marian. Por um instante esqueceu qualquer preocupação, e apenas quis sair pela noite com ela. Sistinas era uma cidade tão grande, quanto estranha. Ruas enormes, luzes amareladas, visual cinza, prédios envelhecidos. Parecia mergulhada eternamente em sépia.
De mãos dadas, andaram durante algum tempo, afastando-se cada vez mais por entre os subúrbios, até passarem em frente a um cemitério. Pequeno, mal cuidado e com todo aquele silêncio e pinta de mal-assombrado. Quase pôde ver névoas se deslocando entre os túmulos.
— Vamos entrar? - ele perguntou.
— Como é? Você quer que a gente...?
— Por que não? Vamos lá...
— Você conhece a fama dos cemitérios de Sistinas, não, Lewd? Já escrevi matérias a respeito. Todos os tipos de mendigos e segregados da sociedade rondam esses lugares, além dos malucos de seitas satanis...
Ele não deixou Marian terminar. Sabia que se deixasse, ela realmente o convenceria de que não era uma boa entrar ali. Sua namorada era jornalista, e sabia o que dizia. Puxou a mão dela com firmeza, e acabaram entrando. Sentaram-se numa espécie de clareira, quase no meio do cemitério.
— Desde quando entra nesses lugares? Achei que te conhecia, Lewd. Nunca foi disso, mudou quando?
— Eu não mudei, apenas quis entrar hoje. Algum problema, além do medo? Tente controlá-lo, concentre-se em como isso aqui é calmo, silencioso. Não tenha medo de mortos, mas sim das coisas vivas, que podem te afetar.
Ela não sentiu conforto nas palavras dele. E nem tinha tomado tanto vinho assim para aceitar estar ali, sentados em meio a sepulturas, iluminados apenas por uma gigantesca lua cheia. Percebendo o nervosismo de Marian, perguntou se ela lembrava de quando cantavam juntos, numa época distante, antes de namorarem de fato.
— Claro! E a favorita era "Deus", do Sugarcubes. Eu adoro essa música!
— Você ainda lembra da letra? - ele perguntou, sorrindo com as lembranças antigas. Marian endireitou o corpo, como se fosse declamar um poema de efeito, costas retas, estufou o peito e começou, com uma voz no mínimo encantadora, em meio a todo aquele silêncio:
"Deus não existe.
Mas se existe, ele mora no céu acima de mim,
Na mais rápida e larga nuvem lá de cima.
Ele é mais branco que o próprio branco... e limpo.
Ele quer me alcançar..."
Lewd acompanhava com um olhar admirado. Era daqueles momentos únicos em que você quase que sente o cheiro de anos passados. Ela continuou:
"Deus não existe.
Mas se existe, eu sempre reparei nele."
— Acho que esqueci um pedaço, Lewd. - ela deu um olhar sapeca. - É sua vez, agora!
Uma nuvem passou pela lua, encobrindo um pouco a luminosidade, e ele começou a cantar seu trecho:
"Uma vez o encontrei, isso realmente me surpreendeu...
Ele me pôs numa banheira, e me fez limpo,
realmente limpo."
Marian elevou a voz e cantou, revezando com ele:
"Para criar o universo, você deve provar a fruta proibida."
Lewd:
"Ele me disse 'oi'. Eu disse 'oi', e eu continuava limpo."
Marian:
"Deus não existe,
Mas se existe ele quis descer daquela nuvem,
Primeiro os dedos e as mãos de mármore,
Mais silencioso que o silêncio e lento que a lentidão,
Descendo até a mim."
Os dois sorriram, pois tinham esquecido o resto da música, e então cantaram juntos:
"Deus, Deus, Deus, Deus
Ele não existe"
Marian enfim relaxou, e pediu um abraço. Na verdade, quis esconder o rosto e evitar uma lágrima boba. Era muito emotiva, e as lembranças que essa música trazia eram de fato ótimas. Sentiu vontade de beijá-lo, mas o que sentiu nos lábios dele inexplicavelmente foi um sabor de despedida. Teve a nítida impressão de que nunca mais o beijaria. Então o casal escutou aplausos zombeteiros vindos de lugar algum:
— Bravo! Vocês cantam muito bem!
Lewd pulou de pé, assustado, olhando para a escuridão que os cercava. A lua estava encoberta, não se enxergava muito. Então viu primeiro os olhos. Dois pares, faiscantes, um brilho maligno avermelhado na noite. O vampiro e Jasmine andavam devagar, mas com passos ameaçadores.
Marian tremeu de medo, e agarrou o braço de seu namorado. Quem eram aqueles dois? Seriam também um casal querendo curtir os encantos de um cemitério à noite? Ficou mais confusa ainda com o que seguiria:
— Jasmine, é você mesma? - perguntou Lewd, desconfiado.
— Você conhece essa mulher? - disparou Marian, antes que a vampira respondesse.
— Sim, é uma fã. Quer dizer, eu acho, se for a Jasmine que conheci...
— Sou Jasmine, mas não a que você conheceu. Eu mudei!
Foi tudo muito rápido. Em segundos, os dois atacaram, e Lewd se viu erguido no ar pela mulher. O vampiro agarrou Marian, e a derrubou no chão. Ela se debatia, gritava, mas não se livraria da mordida dele.
— Solta ela, seu maluco!! - gritou, mas quando tentou reagir, Jasmine o segurou com apenas uma mão, apertando firme seu pulso.
— Poético, não Lewd? Estamos todos num cemitério, percebeu? Eu não pensaria em um lugar melhor!
— Melhor para quê? Sua louca, me solte! Quem são vocês?
— É um cara esperto... - começou a dizer enquanto olhava no fundo dos olhos dele - Pense, afinal, você escreve músicas para nós, para nossa raça... Pense!
— O que ele está fazendo com Marian? Me solta!!
— Calma, ela está sendo sugada. Ele está bebendo o sangue dela. Isso responde todas suas tolas e previsíveis perguntas? Por que não relaxa e... simplesmente curte?
Dizendo isso, Jasmine trouxe a mão dele até os seios, e em seus olhos a fúria rubra parou de queimar. Observando Lewd assim tão perto, como ela nunca esteve antes, por um instante quase desistiu de matá-lo. Apaixonou-se pelos olhos dele, castanhos, profundos, serenos. A vampira baixou a guarda, mas levou o murro mais forte que ele pôde acertar bem no meio da cara. Surpreendida, ela caiu para trás, tropeçando e xingando.
— Solta ela, maluco. - disse, se voltando para o homem que atacava sua namorada.
O vampiro ergueu a cabeça, e Lewd viu o quanto Marian estava pálida, ao contrário dele que agora estava bem corado. E dos lábios molhados com o sangue dela, ouviu enfim a voz da criatura falar:
— Vocês estão mortos. Os dois. Sua namoradinha aqui tem o sangue mais doce que já bebi!
Antes que Lewd fizesse ou pensasse em algo, Jasmine atacou, abraçando e imobilizando-o por trás. Pendeu a cabeça dele para o lado, deixando o pescoço exposto. Quando achou que seria seu fim, ela sussurrou:
— Vai morrer somente depois de assistir meu parceiro secar sua namorada. Não é uma coisa muito agradável de se ver, sabia? Ela vai murchar, literalmente. Vai perder esse aspecto de florzinha frágil que tem.
O vampiro então ergueu Marian, que devia estar desmaiada. Não podia estar morta, não ainda. "Não morra, por favor!" Que contradição, pensou em pedir a Deus pela vida dela, apesar de estarem cantando "Deus não existe" apenas alguns minutos atrás...
— O sangue dela está quase acabando. Diga adeus à sua ex-namorada, Lewd. - disse Jasmine, triunfante. Quando ela lambeu a orelha dele, antecipando a mordida que daria em seguida, algo aconteceu. Pela segunda vez, uma voz vinda de lugar algum soou, com uma suave brisa fresca que soprou:
— A alma da carne está no sangue... Está escrito no Levítico.
Lewd a enxergou primeiro. Era uma mulher com um vestido tão branco que brilhava. Parecia totalmente deslocada ali, naquele lugar escuro e frio de morte, entre aqueles de preto. Ele percebeu que Jasmine vacilou, e então conseguiu se soltar. No mesmo instante em que correu para socorrer Marian, o vampiro pulou em cima da estranha figura de branco.
Jasmine ficou parada. Sabia que aquela não era uma mulher comum. Foi se afastando aos poucos, devagar, enquanto assistia o vampiro atacar o anjo.
— Te persegui por noites seguidas, e enfim te achei. Nesse cemitério encontrará seu fim, cria das trevas, aqui será enterrado! - sentenciou Nadya.
O vampiro sentiu a verdade naquelas palavras, e pela primeira vez teve medo. Ela o segurou forte pelo braço e sua mão começou a queimar a carne desmorta. Ele tentou se debater, se soltar, mas não conseguiu. Começou a gritar, e foi o suficiente para Jasmine fugir correndo. Lewd segurava Marian nos braços, totalmente perdido e alheio ao duelo de forças que acontecia na sua frente.
Nadya queimava aos poucos o ser maligno, talvez descontando na carne desmorta todas as vítimas que ele incinerou. Quando percebeu que não teria escapatória, fez o impensável: avançou e mordeu o pescoço do anjo, com toda a força que lhe restava!
Achando que teria uma chance, ele afundou os dentes na carne de Nadya, mas o sangue não veio. Pelo contrário, o líquido que chegou à sua boca era cáustico, ácido, e queimava também, como se fosse a ira divina. Escapou dela, no mais puro desespero, mas teve que segurar o queixo com as duas mãos. Sua mandíbula começou a descolar!
Lewd não sabia o que fazer com sua Marian, tão frágil e pálida, caída desmaiada em seus braços. Parecia que já estava morta, mas ele nem pensava nessa hipótese. Ergueu os olhos sem esperança, foi tempo de ver o vampiro ajoelhado ante o anjo, tentando em vão aguentar as dores que despedaçavam seus dentes. O queixo então caiu, negando ao vampiro o último grito, tal qual ele negava às suas vítimas.
— Um vampiro deve morrer pela boca, pagando assim por sua luxúria, por suas mentiras e também pelo beijo fatal que carrega. - dizendo isso, Nadya segurou a cabeça dele entre as mãos, e um fogo divino queimou todo aquele corpo apodrecido que se negava a morrer.
Nos próximos minutos, só o crepitar do vampiro incinerando cortava o silêncio naquele cemitério. Marian estava gélida, muito pálida e sem nenhum sinal vital. Lewd começava a pensar que estava morta, quando o anjo se abaixou em sua frente:
— Eu não tenho mais a graça divina, mas talvez eu ainda possa curar, mesmo usando minhas mãos que ultimamente só servem para matar e destruir.
Lewd olhou meio desconfiado para Nadya, mas deixou que o anjo pousasse a mão na testa de sua namorada. A princípio, nada aconteceu, mas depois um brilho fraco pareceu aquecer Marian. Ela não acordou, nem deu nenhum sinal de vida, mas de alguma maneira já parecia melhor...
— Tem consciência do que viu aqui hoje, mortal?
Lewd, que olhava atentamente para Marian esperando que ela acordasse, não ergueu a cabeça. Não respondeu nada.
— Você teve uma chance rara. Numa única noite, na passagem do ano, entendeu que tanto o bem quanto o mal caminham pela Terra, entre vocês. Aprendeu alguma coisa? Tirou alguma lição para o futuro?
— Sim - ele começou, voltando o olhar para Nadya - Aprendi que o bem pode ser corrompido. Pensa que não percebi que suas asas foram arrancadas? Você não é um ser totalmente iluminado. Ainda não curou minha Marian, sinal de que pecados pesam contra você também.
O anjo não sabia se ele disse aquilo movido pela preocupação de ver sua namorada por um fio de vida, mas não conseguiu ignorar o peso daquelas palavras. Aproximou-se do rosto dele, quieta, sem dizer nada. Apenas o encarou.
Lewd devolveu o olhar, apesar de meio arredio. Entendeu nesse momento o porquê a bíblia retrata as aparições de anjos como algo terrível. Sempre que um deles se manifestava aos homens, declaravam "Não temais!". Ver um anjo, assim tão perto, era mesmo algo estranho, indescritível. Os olhos dela eram como duas bolas de fogo divino.
Nadya pareceu estar cheirando a essência dele. Observou-o por mais alguns silenciosos instantes, e então levantou-se e partiu. Ele ficou ainda um tempo acompanhando a figura de branco sumindo por entre os túmulos do cemitério. Então Marian soltou um leve suspiro.
"Quantas pessoas podem dizer que viram um anjo no réveillon?" - ele pensou, abraçando com força sua namorada, que agora respirava com dificuldade, mas estava viva...
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"Reveillon" foi publicado originalmente em 27.12.02.