"Malorum esca voluptas"
O prazer é o alimento dos males
#38
Revólver
Lembro-me como hoje daquele dia. O despertador tocou, mas eu já tinha acordado espontaneamente cinco minutos antes. Ridículo, não? O ser humano, a única criatura dotada de livre arbítrio e inteligência na face da Terra, escrava de uma bostinha dessas: um despertador. Era um escravo das horas, e começava oficialmente mais um dia patético pra mim. Pelo menos foi o que pensei ao deixar a cama.
Nos primeiros minutos em que acordamos geralmente temos uma visão mais crítica de nossa própria vida. Eu na época enxergava os pesares, e eles dividiam o quarto comigo: a ansiedade e seu olhar vingativo, as enfermidades rondando minha cama, lívidas. O medo e a fome, as verdadeiras mães dos crimes.
Miséria e morte. Essa última sempre vigilante.
E a velhice estava melancólica e paciente, me esperando num canto.
Enquanto eu não lavasse o rosto durante o banho e me preocupasse com os problemas menores do dia a dia, os pesares não me deixariam em paz. Era por isso que tomava pílulas com meu café da manhã.
Apesar de toda essa minha consciência, era uma cara normal, com uma casa normal e vida normal; refém de um trabalho estagnado e repetitivo.
Na verdade, a única coisa de anormal na minha rotina era... ela! "Ela", um sopro diferente na minha vida tão igual, maçante e tediosa. Era como respirar ar fresco depois de um tempo preso num quarto mofado. Não tinha nada que outra mulher não tivesse. Nem era tão bonita assim; até apostava que tinha os peitos caídos e pernas estriadas; daquelas que são mais bonitas, vestidas do que peladas. Mas eu a descrevia como "excitante". E ela realmente o era!
Eu respirava desse "ar fresco" diariamente pelas manhãs, quando pegava o metrô com ela. Essa mulher me conhecia tanto quanto aos outros que estavam no vagão, ou seja: apenas nos encontrávamos a caminho do trabalho. Nós, os eternos escravos das horas. Por isso ela nem percebia o quanto era observada por mim. Entrávamos em estações diferentes, mas descíamos sempre na mesma. Isso porque ela trabalhava bem próxima ao meu escritório.
O constrangedor é que na primeira vez em que a vi, eu estava com as calças abaixadas, mijando. Ela apareceu, tranquila, na janela do prédio vizinho, fumando. Como estava em algum andar acima do meu, teve uma visão indiscreta do que eu fazia... e o que não enxergou, sua mente com certeza complementou. Desde então passei a observá-la com mais atenção.
A maneira sensual dela caminhar. Que bunda! E ela tinha aquele jeito de requebrar somente o pulso direito, isso evidenciava seus dedos delicados. Até hoje não posso e nem consigo explicar o quanto aquilo me excitava. Aqueles dedos macios envolvendo e punhetando meu pau, nossa! Ela jogava quase com força o braço direito pra trás enquanto andava, mas não fazia o mesmo com o esquerdo.
O amigo imaginário que mora dentro da minha cabeça sussurrou certa manhã que ela era tão grande, suculenta, tão gostosa, que o pretendente precisaria ser bastante dotado pra comer, ou então ter bala na agulha.
E eu nem tinha tanto pau assim, muito menos bala na agulha.
Pela manhã eu estava atrás dela no vagão, e um longo cabelo estava displicentemente solto nas costas, pendurado em seu impecável vestido. Estiquei minha mão e o peguei, mas nem sei como tive coragem de fazer aquilo. Ela percebeu e olhou para trás. Não me repreendeu, mas também não sorriu. Os outros passageiros viram também e me censuraram, mudos. Eu me senti um fetichista frustrado, com aquele delicado fio de cabelo em minha mão. Soltei-o no chão e torci meus lábios num sorriso amarelo de desculpas.
Consegui tirá-la da minha cabeça durante aquele dia, e depois do expediente fui ao bar beber sozinho, como gosto de fazer. Sou daqueles que bebem, bebem e não caem na doce euforia do álcool. Eu mantenho uma sobriedade chata e o raciocínio. Todos meus amigos de trabalho perceberam, então nunca mais fui convidado para beber com eles. Tanto melhor, pois não teria saco pra ficar aturando marmanjos vomitando asneiras na mesma mesa que eu.
Foi quando ela entrou no bar, também sozinha. Sentou-se numa mesa relativamente próxima e nesse instante percebi que seu vestido longo e sóbrio tinha uma lasca que descobria inteiramente sua coxa direita conforme a movimentação. A visão da pele alva em contraste com o tecido escuro e o decote generoso - quase vulgar - mexeram com minha libido. Porém, ela me dirigiu um sorriso gentil, educado, que me desconcertou naqueles preciosos segundos que antecedem uma conquista. Fiquei paralisado, uma criança sem saber como agir: assim como no incidente do metrô, ela tinha vencido!
O eterno dilema de aproximação. Tenho amigas que me afirmam que muitas belas mulheres passam a vida sozinhas, pois, segundo a lenda, uma mulher bem resolvida e decidida assusta os homens. O fato é que depois de muito beber sem ter criado coragem de abordá-la, resolvi subir até o banheiro. Ri do ridículo da minha situação, mas quando voltei ao bar fui surpreendido! Lá estava ela, esperando por mim, agora sentada na minha mesa.
Sentei-me sorrindo, e sua naturalidade nesse instante me deu calafrios. Não estou exagerando, ela realmente pareceu tão à vontade com a situação... como se fizesse isso sempre! E daí pra se pensar o pior é apenas uma tênue linha de imaginação. Lembrei-me que certa vez estive lado a lado com ela no vagão. A linha de sua cintura ficava quase acima do meu estômago, de tão alta. Submeter uma mulher de tamanha estatura deve ser a fantasia de 99,8% dos indivíduos da raça masculina.
— Não acho justo trabalharmos tão perto e nem ao menos nos cumprimentarmos num bar. Qual seu nome?
— Neil... - esbocei um sorriso - meu nome é Neil. Realmente, trabalhamos muito próximos.
— Eu já te vi no prédio vizinho, se não me engano. - ela sorriu levemente nesse ponto - Meu nome é Faith.
"Não é não, sua sacana. Quem se chamaria 'Faith'? Mas tudo bem, façamos seu jogo."
— Prazer Faith (Fiquei sem saber se estendia a mão para cumprimentá-la ou não). O que está bebendo?
— Vinho. A primeira taça apaga a sede, a segunda dá alegria, a terceira prazer, a quarta dá loucura...
— Está citando alguma peça famosa?
— Um livro, na verdade. Mas não me pergunte qual. Sou péssima pra nomes... Neil.
— E em que taça você já está?
— Terminando a segunda.
Uma frase tão simples, cheia de insinuações e sentidos, e o babaca aqui já estava dominado, caído de quatro. Como me impor, sem parecer mais babaca, ou pior, um babão?
— E pretendo saber o que vem depois da quinta, sexta, antes da noite acabar. - ela complementou.
Seus lábios estavam ainda mais avermelhados devido à bebida. Isso combinado com aquele ar de femme-fatale, com o vestido justo e a fala pausada e sensual - como que afetada pelo vinho - tinha um efeito simplesmente devastador. Ela só precisaria pedir, e eu de bom grado iria para o inferno com ela. Ou por ela, se preciso. E o simples fato de formular esse pensamento esquisito ilustra bem como tudo aquilo parecia surreal. Quase falso, quase um devaneio. Metade sonho, metade realidade. O bar em si, o aroma que ela exalava (doce perfume), a cor viva (tão saudável) de sua pele... e o seu olhar!
Uma brisa mais forte que o normal sopra e desvia momentaneamente minha atenção para a porta do estabelecimento. Uma mulher com roupas muito claras (quase ofuscantes na iluminação esquisita do lugar) entra e vai sentar-se ao lado de outra numa mesa afastada. Essa outra mulher é o oposto, traja roupas escuras e maquiagem pesada, e tem os cabelos mais espetados que o comum. Lembrou-me vagamente uma celebridade, e seu olhar era em minha direção, mas eu não parecia estar em sua linha de visão. Me ignorava completamente, mesmo olhando pra mim! Mesmo após a chegada da estranha de branco, ela seguiu atenta. Quase pude jurar que prestava atenção particularmente em nossa mesa.
— O que tem de tão interessante daquele lado? - Faith me perguntou, debruçando seu decote instigante em minha direção.
— Nada. - e a firmeza com que respondi me deu a impressão que as duas estranhas sumiriam do bar. De fato, Faith parecia não notar aquelas mulheres.
— O que faz da vida? No que trabalha, querido Neil?
"Querido...?"
— Olha, não me leve a mal, mas não vai querer saber realmente sobre meu entediante ganha-pão diário. Eu mesmo nem quero saber de falar em negócios.
— Então falemos de prazer. O seu. Qual foi a maior loucura que já aprontou? Sabe que a vida é curta, e precisamos curtir ao máximo?
Diante da minha hesitação, ela atalhou, sorrindo:
— Ah, vai, me conta, vou adorar saber. Está protegido pelos onipotentes poderes do álcool. Nada que disser aqui será usado contra você. - essa última parte saiu solene, debochada.
Como resistir? Só faltou a fulana acender um cigarro, ou mascar um chiclete, para completar o figurino. Pensando bem, seria melhor um cigarro. Sempre odiei ver mulheres mastigando chiclete. Parecem vacas ruminando.
— Bem, eu? Eu consegui convencer uma ex-namorada trazer sua amiga para um ménage à trois. Ela sabia do meu tesão pela amiga.
— E...?
— E nada. - retruquei, um pouco sem graça - Só acho que até agora foi minha maior loucura.
— Fraco.
— Hã?
— Conta mais! Não percebeu ainda? Eu quero enlouquecer. - ela mostrou-me a taça de vinho nesse instante - Conte-me sua vida sexual, detalhes que só homens reparam. Mas não minta pra mim, não finja que é um ator pornô, conte-me sua normalidade. Nada é mais curioso do que a vida sexual de uma pessoa, mas sem dramatizações. Só a verdade, nua e crua.
— A amiga dela era mais experiente que a gente. Nos ensinou umas coisinhas, trouxe vibradores e cremes pra nossa cama, e uma língua de enlouquecer. Meu maior orgasmo até hoje foi quando elas duas juntas me chuparam. Nada de excepcional, como você mesma vê.
— Excitante. Sabe, eu gosto de casais comportados transando. Sabe qual foi a minha maior loucura, Neil?
— Não, mas sou todo ouvidos.
— Eu forcei um casal a transar na minha frente.
— Como? Você pagou eles?
— Não. - ela retrucou, quase ofendida - Como disse, eu "forcei". Com um revólver. Meu maior orgasmo, Neil, foi berrar pro cara que enrabava a própria esposa que ele não podia gozar, senão eu matava os dois! Eu literalmente mijei na calcinha, de tanto que me molhei.
— Intensa você, não? - observei, nervoso.
— Ela gostou. Aposto também que nunca tinha gozado tanto com o macho dela. Eu vi o prazer estampado naquele olhar, na maneira de morder os lábios, no jeito de mexer a língua, nos gemidos anormais.
— Como ela gemia?
— Rouca. Gemia do fundo da alma.
— Como foi?
— Eu entrei atrás deles numa missa de domingo na Grande Catedral. Após o término, segui os pombinhos e enfim os abordei com meu calibre 38. Entramos direto num motel. Era um jovem casal, formavam um lindo par.
Faith bebeu mais da taça de vinho, e continuou contando:
— Apenas transem para mim. - eu disse - Se eu não sentir que estão fazendo sexo, lembrem-se que o gatilho é muito sensível! - e eles tiraram um pouco da roupa. Os mamilos da mulher estavam explodindo de timidez e medo do desconhecido. O cara apenas abaixou a calça e quis começar a trepada todo apressado e desajeitado.
— Não acredito que fez isso...
— Pois fiz. Lembro de ter encostado a arma na orelha dele, e forcei sua cabeça contra o sexo da mulher. Ela não se depilava, então creio que ele sentiu um pouco de nojo na hora. A impressão que tive é que a mulher nunca tinha sentido um toque tão íntimo. Imagine, uma língua entrando e lambendo sua vagina, seu clitóris! Ela gozou um monte! O corpo feminino é de longe mais interessante do que o masculino. Tem uma série de sinais, de locais para se explorar...
— E o cara, você não se sentiu atraída por ele?
— Nem fodendo. Ele era muito frio, burocrático. O cara não falou nada durante a foda, nem gemeu, nem emitiu som algum além das estocadas. Acho que depois da sessão de sexo de verdade em minha presença, sua esposa deve ter procurado outros homens. Tenho certeza disso. Ela estava tão afoita que, enquanto ele a enrabava, pus o cano do revólver em sua boca. Ela gostou de sentir o metal entre os dentes, até roçava a língua, acredita?
— E como terminou isso? Eles deixaram você simplesmente ir embora?
— Ela, se pudesse, me agradeceria abertamente. Mas seus olhos já diziam tudo. Ele não. Olhou bem sério pra mim e disparou: se eu te encontrar de novo em minha frente, te mato.
— Hahahaha! Eu também diria o mesmo.
— Claro, afinal, você é normalzinho como ele, Neil. "Se eu estiver novamente armada, quem te mata sou eu!", respondi pra ele.
Nesse instante eu percebi um detalhe no mínimo perturbador naquela mulher de branco da outra mesa. Ela tinha a atenção em nossa direção tão focada, quase em transe. Eu sabia (não sei explicar como!) que ela conversava com a de roupa negra, mas nenhuma delas mexia os lábios! Faith me perguntou novamente o que eu tanto olhava naquela direção, e tive novamente a sensação de que ela não enxergava as duas como eu.
— Moral da história, querido: o poder está no tambor de um revólver. Alguém já disse isso, não?
— Mao. Mao disse.
— Você não acreditou no que fiz com o casal. Mas e se eu te disser que estou armada hoje, Neil? - ela sorriu.
Fui pego de surpresa. Meu raciocínio simplesmente falhou, e tomei o caminho mais simples:
— Ah, claro que você não está armada, Faith. Imagine.
Ela bebericou o resto do vinho, esvaziando a taça, com uma expressão grave no rosto. Tão grave que ela nem precisava ter sacado a máquina da bolsa para provar: eu já tinha acreditado.
— Você vai sair daqui comigo, Neil.
Nem me atrevi a questionar. Apenas quis saber aonde iríamos.
— Visitar um anjo, querido. - ela não só estava armada, como estava cheia de dinheiro em notas grandes, sendo que deixou uma delas na mesa para o garçom. De canto de olho, percebi que a moça de negro e cabelo espetado sorria pela primeira vez. Ela e sua companheira branca foram as únicas que notaram toda a movimentação. Independente disso, nenhuma das duas nos seguiu na caminhada a pé até uma das mais afastadas praças de Sistinas, onde uma portentosa estátua de anjo em mármore se erguia entre diversas árvores. Naquele horário o local era pouco frequentado. Sentamos próximos à estátua.
— Fala a verdade. Você está excitado!
Estava, mas ela não tinha adivinhado nada. Bastava observar o volume que se formou na minha calça. Agora, porque eu estava naquele estado, não saberia dizer.
— Você tem bastante dinheiro aí, Neil?
— É um assalto? - tentei manter a calma. Juro que tava difícil.
— Claro que não. Eu proponho uma aposta, um jogo. Confessa: na sua vidinha diária essas coisas não acontecem, por isso você está excitado. Curioso e com medo do desconhecido. Tanto quanto a esposa daquele cara, o fiel da igreja.
— Então sei que é só um jogo seu, e que não vai atirar em mim, Faith.
— Não é um jogo meu. É nosso. Eu te proponho uma aposta.
— Qual aposta?
Ela abriu o tambor da arma, e deixou cair todas as balas, exceto uma. Fechou novamente a arma e num movimento rápido fez o tambor girar:
— Roleta russa.
— Valendo o quê? - nem eu mesmo acreditei que tinha perguntado, com uma naturalidade que me assustava.
— Meu dinheiro. O seu. Nossos corpos. Que temos a perder?
Era brincadeira, certo? Eu poderia aceitar, e assim que a arma estivesse na minha mão eu poderia ir embora, sem que ela me impedisse. Melhor: eu poderia forçá-la a fazer sexo comigo. Eu poderia roubar toda a grana dela também. Eu poderia submetê-la a coisas que...
Ela interrompeu meus piores pensamentos:
— Aceite o jogo Neil, meu querido normalzinho? Se sobrevivermos à roleta, e se você ganhar todo meu dinheiro, meu corpo será seu, se quiser. - esse "se quiser" mergulhou meu cérebro na lascívia.
— Mas se eu ganhar todo seu dinheiro - ela continuou - você será meu também. Te comprarei com essas notas, e poderei fazer o que quiser contigo.
Eu pedi para examinar as tais notas. Ela mostrou-me algumas. Grana alta, que eu folheei demoradamente.
— O que está fazendo?
— Apenas olhando pra ver se já tem alguma mancha de sangue nesse dinheiro.
O sorriso macabro dela me congelou.
— Apostamos uma quantia, eu pego a arma, aponto pra minha cabeça e disparo. Se sobreviver, ganho a quantia. Aí apostamos novamente, e será sua vez com a arma. Sobrevivendo, você pega a grana, e assim sucessivamente. E só paramos quando o dinheiro acabar. Meu ou seu.
— Ou quando uma cabeça explodir.
— Sim. Vai, diga que topa, Neil. Tô louca por algo contigo! Será a experiência da minha vida e estou dividindo com você.
O plano original ainda ecoava em minha mente. Ela seria a primeira mesmo. Depois, com a arma na mão, eu poderia aprontar pra cima dela.
— Eu topo! - aceitei, disfarçando a euforia.
— Ótimo, você já não é mais tão normalzinho assim, tá pegando o espírito da coisa! Aliás, você sabia que existem somente treze esculturas dessas em Sistinas? - ela desconversou, apontando para o anjo em pedra - Nem doze, nem quatorze. Apenas treze e ninguém sabe quem as esculpiu, nem quando. E reza a lenda que não conseguem erguer a décima quarta em nenhum outro lugar dessa maldita cidade.
— Sabe se já tentaram? O que acontece quando tentam?
— Eu não sei... mas se eu ganhar a aposta, usarei seu dinheiro pra construir uma dessas, aí veremos!
Meu Deus, eu sorri com ela, mas depois percebi um terrível agouro: Sampaku...
Foi o que vi no olhar dela, tão perto que me deu arrepios. Você não sabe que essas coisas existem, até ver e comprovar de fato: o branco dos olhos aparece não só dos lados, mas também embaixo da íris. Três brancos. "Três vazios", como os orientais chamam esse fenômeno, essa instabilidade da alma. É um lance psíquico, caos espiritual. Vem na mesma embalagem da tragédia na maioria das vezes.
— Coloque seu dinheiro aqui. A aposta inicial é...
Mas eu não estava ouvindo. Funcionando no automático, tirei umas notas da carteira e juntei às dela. Minha súbita letargia só passou quando percebi de fato a mulher que estava na minha frente. Um delicioso decote, cabelos louros soltos como um convite à cavalgada e as unhas. Compridas, vermelhas. Ela empunhou a arma com graça, encostando o cano nos fios de cabelo dourados, na lateral de sua cabeça.
— Aponte aqui, na têmpora. É mais divertido! Neil estou com a calcinha toda molhada, ensopada, você nem imagina! Sabe o que é um "gatilho cabelo"?
— Não. - respondi, e sinceramente não sabia qual era a expressão em meu rosto naquele momento. Minha mente estava num vácuo que só propagaria o som do clique fatídico.
— É um gatilho sensível. A pressão para o acionamento é mínima. Como um gemido. Um gemido de morte. Agora me conta, seu puto: quer me foder, não quer? Qual sua maior vontade comigo aqui e agora?
— Eu quero cuspir dentro da sua boca, Faith.
Ela lambeu os lábios enquanto me encarava fixamente, mas seus olhos não diziam se tinha gostado ou não da ideia.
— Tem medo da morte? - ela protelava a pressão no gatilho.
— Não da morte em si, mas do que existe depois dela. - respondi, com uma convicção que nunca tivera antes.
— Não existe depois. A morte é o fim.
— Tem que existir algo. É muito injusto pensar que só temos essa vida aqui... alguns anos apenas. "Droga Neil, corte o papo existencialista, seu tonto!"
Click!
Meu coração parou de bater quando ouvi aquele clique seco, inesperado! Faith arregalou os olhos ao contrário de fechá-los, e sorriu quando descobriu que tinha sobrevivido. Caiu para trás sorrindo, arma na mão, e uns tremores estranhos tomaram seu corpo. Ela também tinha medo, mas se excitava com a sensação.
— Foi maior descarga de adrenalina que já senti na vida! Porra, isso é bom demais, Neil! Eu gozei, sabia? - antes que eu dissesse algo, ela levou uma das mãos à lasca do vestido na altura da coxa e apalpou a própria calcinha. Eu vi de relance aquele tecido úmido, mas senti mesmo a distância o cheiro feminino que impregnava os dedos daquela loura maluca.
Ainda arfando, ela passou a arma para mim. Me entregou de maneira tão pura, simples; compartilhando realmente tudo aquilo (o que quer que fosse!) comigo, que não tive como me negar a participar também. O plano de pegar a arma voltou em minha mente, mas dissipou-se num segundo quando senti outro cheiro mais forte, mas igualmente provocativo como o mel vaginal de Faith.
Sabe qual o cheiro de um revólver? Tem cheiro de ferro forjado diretamente no inferno.
Aquela brisa voltou a soprar em mim de maneira até insistente. Instintivamente olhei para os lados, meio que procurando a enigmática mulher de branco, com seu olhar mudo, tenso e atento.
— Não se preocupe, Neil. Esse lugar é tão deserto que já transei por aqui sem ser incomodada. Foi em cima daquele banco de concreto ali, ó! - apontou, estranhando minha súbita desconfiança. Sua voz agora era doce, suave e levemente preguiçosa, como se tivesse gasto todas as energias num orgasmo e precisasse urgentemente dormir.
— Essa arma é meio antiga, coisa de família mesmo. Agora que suas digitais estão nela, caso ganhe a aposta ela será sua. Aconselho que a jogue no rio que corta Sistinas depois da nossa brincadeira. Eu faria isso se fosse você, claro, apesar de ser uma máquina e tanto. Ela usa pólvora negra, tecnologia obsoleta. Fumaça, feita de nitrato de potássio, carvão vegetal e enxofre.
— Enxofre, outro ingrediente do inferno... - pensei alto.
Novamente o dinheiro, o maior dos deuses modernos, foi sacrificado em nossa honra. Nem sei quanto apostei, só pensava em encostar aquele revólver na minha têmpora e puxar o gatilho. Estava fascinado com a ideia. Quantas pessoas tinham coragem de fazer isso? E, dentre essas, quantas tinham sobrevivido?
— Gire o tambor, querido.
Não foi Faith quem disse aquilo. Eu sabia que não. Faith ainda estava extasiada. Quem disse aquilo formou-se em minha mente como uma criatura de roupa negra (ou corpo negro) e cabelos espetados. Uma mulher, vagamente parecida com a Siouxsie Sioux, e percebi que era a mulher que estava antes no bar!
— Quem? - Faith perguntou-me, e percebi que outra vez tinha pensado alto.
— Siouxsie, aquela dos Banshees. - respondi sem pensar.
— Ah, a banda. Sei. Já sonhei com essa mulher de preto, Neil. Ela vinha me buscar.
A ansiedade em apertar o gatilho contra mim era tamanha que gostaria que ela parasse de falar. Girei rapidamente o tambor do revólver, sabendo que tinha uma em seis chances de morrer. Um índice alto, que fazia meu coração descompassar. Faith fez um silêncio solene e fixou seu olhar no meu. Ao contrário dela, não aguentei ficar de olhos abertos. Enquanto fechava minhas pálpebras para o mundo, mergulhando numa escuridão familiar, sentia meu dedo suado apertando de leve, bem de leve, o gatilho. Uma ansiedade elevada ao quadrado tomou conta de mim, e então apertei. Click!
Abri novamente os olhos, e Faith estava sorrindo à minha frente, tão perto que eu sentia sua respiração e seu hálito de vinho.
— Seu puto, você tem culhões! Bem-vindo à vida, chega de mediocridade!
Nem sabia o que sentir. Eu estava vivo, e agora a morte estava novamente apontada para ela. Faith empunhou o revólver com uma graça de movimentos que só ela tinha. "Minha vez!"
Eu caí de costas, assim como ela tinha feito antes. Desmoronei, pensando no que tinha acabado de fazer. Eu adorei escutar aquele som quase imperceptível das alavancas e molas entrando em ação, empurrando o martelo inexoravelmente na direção do projétil. Se ele estivesse na posição certa no tambor, atravessaria minha cabeça com uma velocidade perto dos 700 km/h.
Eu teria perdido o jogo.
— Quanto vai apostar agora, Neil?
Levantei-me bruscamente, e peguei algumas notas na carteira. Uma grande quantia, deixando apenas o suficiente para mais uma aposta. Então desabei novamente, deitando no banco. Olhei para o céu e foi quando tive a nítida impressão de ter enxergado a mulher de branco empoleirada na estátua do anjo. "Empoleirada" foi a palavra mais próxima da descrição do que vi. Seus olhos, mesmo nesse rápido instante, eram cheios de compaixão. Um segundo depois e ela não estava mais lá.
— Que foi?
— Nada. "Quem me acreditaria?" - Mas ela percebeu algo sério em minha expressão, e o clima de encanto com a roleta russa foi quebrado. Ela ficou mais compenetrada, como se não estivesse mais se divertindo (e gozando) com aquela situação. O revólver agora parecia mais pesado em sua mão delicada. Tentei descontraí-la:
— Me conta uma fantasia não realizada sua.
— Servir quatro caras, como uma puta. - ela confessou sem vacilar. Vomitava as palavras como se esperasse desde sempre pra me contar aquilo. - Com vestido de empregadinha e tudo mais. Mamar, trepar, cavalgar, ser enrabada, tenho desejos bem selvagens! Na verdade, eu adoraria visitar uma cela onde estivessem uns cinco detentos. Daqueles que ficam meses sem ter visitas íntimas, sabe?
Sampaku. Estava no estágio máximo agora, e eu vi também uma lágrima. Tudo correu muito acelerado depois disso. O estrondo da explosão da pólvora negra saiu diretamente do inferno. Apesar do parque estar deserto, poderia jurar que ouvi latidos de cães no momento do disparo. O sangue misturado com pequenos pedaços daquela mente perturbada espirraram em mim, nas notas ao chão e até mesmo na estátua do anjo.
Anjo! A brisa, o som de asas, então vi por um breve instante a mulher de branco perseguindo a de negro, que agora se parecia mais com uma daquelas pavorosas aves de rapina do que com a Siousxie. A criatura sorria do destino da falecida, e seu olhar estampava morte, mesmo visto à distância. "Gire o tambor, querido" ela tinha me dito, e agora eu via que seus pés galináceos realmente não tocavam o chão. Alucinação?
A realidade me chamou de volta com força quando o cadáver de Faith tombou com força em meu colo. O disparo feito tão de perto chamuscou uma parte de seu cabelo louro.
Eu corri como nunca antes em minha vida. Corri por ainda estar vivo e por ter visto a morte de perto, corri por medo, por instinto. Claro que minhas impressões digitais na arma e nas notas - além da minha descrição ter sido confirmada por várias testemunhas que me viram saindo do bar ao lado da falecida Faith - não me deixaram correr para muito longe. Ao amanhecer daquela mesma noite fui detido em minha casa pela polícia. Apesar de não saberem exatamente qual minha participação naquela morte, eles sabiam que eu estava envolvido naquilo até a alma.
Passei algum tempo preso, e lembrei-me de Faith quando senti na pele a crueldade do presídio de Sistinas, onde os detentos mais antigos pregam a religião entre eles naquele ambiente hostil, mas se entregam às piores degradações sexuais quando as luzes se apagam nas celas.
Confinado naquele lugar, eu tive muito tempo de ler, principalmente material religioso. Uma das conclusões que cheguei sobre aquela fatídica noite regada a vinho que mudou totalmente minha vida (de pacata para pesadelo) foi que as pessoas se matam por pura falta de fé. Por não acreditar numa outra vida após a morte. Sim, eu tinha descoberto em seu último olhar que Faith procurava apenas um suicídio em grande estilo. Era uma mulher orgulhosa, inimiga da humildade e, portanto, também inimiga da fé. Apesar de viver intensamente, a mulher não tinha objetivos na vida, e nem tampouco fé para conquistá-los.
Me convenci que sua fragilidade espiritual - fruto dessa mesma falta de fé - foi a porta de entrada para algo extremamente maligno sussurrar em seu ouvido, assim como tentou fazer comigo. Não sei quais entidades foram aquelas que apareceram de maneira tão estranha naquela noite, já que a falecida não as enxergava. Mas ficou claro para mim que a criatura negra causou a morte de Faith, e que foi a branca que me salvou.
Graças a esse anjo níveo, a velhice continua pacientemente me esperando num canto, enquanto a morte segue vigilante.
Comentários do autor
"Revólver" foi escrito em 04.12.05. Reescrito em 2012 para o relançamento do site.
"Malorum esca voluptas" acabou virando o lema da cidade, presente em seu brasão, e hoje tremula na bandeira vermelha.