Sistinas
Vampiros não existem
#47

Vampiros não existem

"A morte - como a torpe prostituta - não distingue os amantes."

Álvares de Azevedo

Cavala. Potranca.

Era o "elogio" que ela mais ouvia, do alto de seus 1,87 metros de solidão. Todos os homens que ela conhecia eram baixinhos, como crianças pedintes perto dela. Pedintes de sexo na maioria das vezes. Todas suas amigas também eram baixinhas, e sempre tinha a nítida impressão de que elas cochichavam entre si quando não encontravam no shopping uma roupa que caísse bem nela, ou com o tamanho dos sapatos que calçava.

Não que ela fosse feia. Pelo contrário, era linda, dona de curvas esculturais no auge da forma física, um verdadeiro tributo à feminilidade. Ela era, no máximo, desengonçada. Não tinha aquela graça natural nos movimentos, como outras mulheres menores tinham, mas era sensual apesar do tamanho de seu corpo.

Cavala. Potranca.

Ela era um desafio, um convite ao macho que conseguisse domá-la, mas nenhum parecia ter esse poder. O único noivo que teve foi a maior decepção de sua vida: semanas antes do casamento, ele abriu o jogo dizendo que, na verdade, era homossexual, e que estava se casando com ela para dividi-la com seu chefe na empresa.

"Sabe como é. Ele adora uma potranca."

Babaca. Esse golpe sentimental somado à escassez de homens interessantes e às cantadas grosseiras e propostas indecentes que recebia diariamente - um assédio brutal e desumano que não ajudava em nada a vidinha medíocre que levava - mais uma série de fatores negativos em seu trabalho e vida familiar a fizeram tomar a derradeira decisão; cortar os pulsos. Tornara-se uma mulher amarga, sem amigos, rabugenta e daí para o suicídio seria apenas um passo. Sempre acreditou no mal e duvidou do bem. Um último momento de compreensão e ela entendeu enfim que o bem e o mal são conceitos que andam juntos, afinal um atesta a existência do outro. Se ela sempre duvidou do bem, qual seria o anjo que viria buscá-la na hora da morte?

"Nunca mais vou ouvir a palavra potranca."

O mundo escureceu por um instante, e quando voltou a si, já era noite. Os talhos nos pulsos - o esquerdo bem mais profundo que o direito - confirmavam que ela tinha de fato se cortado. Estava pensando no que viria a seguir, quando a voz falou com ela fora de seus sonhos, coisa que nunca tinha acontecido antes:

— Será um desperdício se morrer, minha querida.

— Quem está aí? - ela perguntou, voltando-se para a escuridão do quarto, assustada.

— Agora você já pode saber. Sou um vampiro, um ser amaldiçoado que te observa há tempos, que caminha com você em seus sonhos, que te deseja como nenhum mortal pode igualar.

Escutar aquele galanteio fez com que ela soltasse um risinho involuntário, pelo absurdo da situação. O vampiro captou o deboche:

— Não desdenhe da situação. Suicidas sempre atraíram vampiros, desde que o mundo é mundo, desde que minha raça existe. E o que tenho a oferecer nenhum homem pode lhe proporcionar. Vida eterna, beleza eterna. Você, linda como é hoje, vivendo para sempre, sem o temor de envelhecer, de fracassar em suas escolhas, ter todo o tempo do mundo!

— Ao seu lado?

— Obviamente. Não posso te agraciar com o dom que carrego comigo se não se entregar a mim. Completamente, de corpo e alma.

— Mostre-se. - nesse momento ela só percebia um ligeiro reflexo do luar nos cabelos escuros da criatura. Ele se confundia tanto com as sombras que a luz parecia se desviar dele propositalmente. Um lampejo passou pelos olhos escuros e sem vida, como órbitas vazias, e ela recuou. Dali em diante evitou a todo custo olhar na direção dele.

— Não, ou sua entrega não será completa e verdadeira. Você é prova viva de que atualmente a aparência domina o pensamento mortal, dita comportamentos. Se conhecer minha face, poderá me achar belo ou aterrador. E isso afetará seu julgamento sobre mim. Quero que me ame, assim como amo você. - a última parte da frase parecia ter sido ensaiada por séculos, mas ela nunca tinha ouvido aquilo dito de maneira tão verdadeira. Suas emoções agora traíam a razão que ainda restava nela.

— E como será minha nova vida? Tem que ser melhor que essa, já que tentava dar um fim nela quando você me interrompeu...

— Será esplêndida. Ao meu lado, conhecerá todo o oculto da humanidade. Toda a magia, a sedução, os truques, conhecerá a alma das pessoas pelo cheiro que elas emanam, pela intensidade do calor do corpo, pela textura e rugosidade da pele delas. Nunca mais será enganada por aparências, querida. Eu conheço todas suas perdas e frustrações, te conheço mais do que você mesma julga conhecer. E sei que no íntimo você quer o que venho lhe dar... Jessica.

Escutar o vampiro falar seu nome pela primeira vez a deixou tentada, de verdade.

— Não me dará tudo isso de graça.

— Eu já lhe disse meu preço. Manter-se ao meu lado, me amar. Da mesma maneira que amo você, incondicionalmente. E já aviso que sou ciumento. Sobrenaturalmente ciumento. Eu posso farejar, rastrear e esquartejar um homem que ousar lamber suas botas, só pela saliva dele!

A potranca seria domada em rédeas curtas.

— O que tenho que fazer?

A escuridão do outro lado do quarto fez um esgar ameaçador com a boca e, novamente num lampejo, brilhou o maior canino que ela já tinha visto. Ele sussurrou entre os dentes pontiagudos:

— Basta que beba do meu sangue. Esse é nosso acordo, mas cuidado! Isso lhe garantirá tudo o que prometo, só que beber desse veneno rubro vai ligar você a mim de uma maneira que nunca irá compreender completamente. Eu mesmo não entendo meus laços com o maldito que me deu sangue, mesmo gerações depois do acontecido.

Jessica baixou a cabeça, pensativa. Estava atraída, quase entregue, mas aquela criatura mesclada à escuridão lhe dava medo. Medo do desconhecido; mas ela já não tinha dado dois enormes passos sangrentos na direção dele, cortando os pulsos?

— Sei o que está pensando, querida. Você já se matou, qual o problema em aceitar umas poucas gotas de meu sangue? É uma condição tão pequena que nem merece discussão.

— Você deve ser horrível... - na verdade, a palavra que dançava na mente dela era "escravidão".

— Ou posso ser muito belo. E talvez seja igual a você: quero ser amado independente da minha aparência. Perto do que sou, meu rosto e físico ficam em segundo plano. Isso serve para você também, que nunca teve valor perante aos que te rodeiam, lembra? Nenhuma amiga sua sabe o quanto você é inteligente, mas sabem qual o número de seu sapato e ridicularizam isso, te enxergaram como uma desastrada a vida toda. Nenhum homem sabe o quanto você é amorosa, mas os pouquíssimos que você teve sabem como você geme e o quanto é grande seu clitóris. Não sabem que você gosta de beijinhos na nuca, mas sabem o quanto você detesta engolir esperma.

Jessica ficou atônita com o balanço exato de seus relacionamentos em vida. Parecia ela mesma falando! Passou instintivamente os dedos nos lábios.

— Você aceita? - a formulação simples da pergunta indicava quase uma necessidade que ela gostou de perceber. De cabeça baixa, selou a própria sentença:

— Me dê.

Dedos macabros saíram da escuridão na direção dela. A mão era excessivamente branca. Punho firme, emoldurado por uma larga camisa de cor preta. As unhas não eram grandes, mas eram maiores do que um homem comumente usa. Também pretas. Perfeitas e ameaçadoras, como navalhas. Os olhos eram dois pontos brilhando enigmáticos ainda escondidos nas sombras, fixos nela, como que a despindo calmamente, sem pressa.

Ele esticou os braços na direção dela, os dedos levemente apontados de maneira ameaçadora. Um filete de sangue escorreu espontaneamente dos lábios de Jessica. Com medo, ela não ousou se mexer, mas piscou nervosamente. Sua respiração alterou-se de tal maneira que o único movimento era o de seus seios que subiam e desciam, já ansiosos pelo toque daquela mão intrigante.

— Sou tudo o que você tem agora. Está pronta para mim?

Tomada pelo prazer e magia daquele instante de sua vida capturado pelo vampiro, ela cedeu.

— Me tome. Me pegue. Me tenha como sua. - ela jogou os cabelos de lado, descobrindo o pescoço em direção ao vazio. A visão daquele mulherão alto, totalmente entregue e indefeso, encheu as veias mortas do vampiro de adrenalina e luxúria. Perseguia essa sensação de dominação e poder tanto quanto precisava de sangue, para se manter vivo.

— Vire-se. - foi a resposta suave das trevas.

De costas, percebeu que a sombra se mexeu na direção dela, e todos os pelos de seu corpo se eriçaram de prazer e medo. Um furacão quente varria a imaginação de Jessica, sugerindo em riqueza de detalhes animalescos como seria o sexo com aquele ser, enquanto o vampiro se aproximava lentamente, degustando a entrega da fêmea. Por trás, pôs a mão direita no ombro dela, sentindo os músculos da vítima relaxarem enfim, se acostumando com a proximidade dele, tentando digerir tudo que estava sentindo.

As mãos eram muito frias, geladas além do possível. O toque era macio, delicado, porém bastante dominador. Quando ela sentiu a língua percorrendo seu pescoço, apertou os olhos com medo do que sentiria, esperando por algo áspero e fétido deslizando em sua pele. Mas não. Sentiu um arrepio caloroso - como a lambida de um amante que ela sempre esperou sem saber - que subiu pela nuca e invadiu seus pensamentos, dissipando as dúvidas. Amoleceu, querendo se entregar por completo. Sentia no toque dele uma espécie de necessidade do corpo dela que a agradava, que a fazia sentir pela primeira vez desejada de verdade. A língua ainda molhava sua pele mais sensível, passeando pelo pescoço, nuca, e chegava sorrateira ao pé do ouvido onde, com suaves mordidas, ele sussurrava todos os prazeres e possibilidades que a aguardavam após aceitá-lo completamente. E ela, que só ainda estava de pé por que o vampiro a segurava, sentiu um calor intenso entre as coxas, uma excitação tão forte que precisou cerrá-las, esfregando-as lentamente uma na outra, como o passo lânguido de uma dança de acasalamento. O vampiro já sentia o doce aroma do sexo da mulher insuflando luxúria em suas narinas, e colocou a mão entre as pernas dela, tateando em busca da fenda tão desejada, esfregando aqueles grandes lábios feminis - inchados de tesão e molhados de mel - contra o tecido da calcinha; seus dedos puxavam devagar o curto vestido coxas acima, descobrindo a intimidade ensopada ainda protegida pela lingerie.

Cravou os dentes naquele pescoço atraente, ao mesmo tempo em que a masturbava vigorosamente, sentindo o tamanho avantajado do grelo dela, intumescido, ansioso pelo coito. Sua outra mão se perdia nas curvas generosas de Jessica, subia procurando os seios, rasgando as alças do tecido com fúria excitada. Tateou o colo com os dedos em garra, reprimindo a vontade de unhá-la, subindo a mão para o queixo, beliscando seus lábios e alcançando a boca. Adentrou-a com os dedos buscando a língua sedenta de novidades, libertando pequenos gemidos de Jessica.

Aqueles dedos tão impuros, pensava ela, que já os sentia penetrando seu sexo - primeiro um dedo, depois dois, três - aqueles dedos que já deveriam ter acariciado tantas outras mulheres, mas que agora exploravam somente a ela. Nada conseguia desviar sua atenção das preliminares do vampiro, que bebia do sangue farto que escorria do pescoço descendo, tingindo os peitos descobertos de vermelho. Sem saber como, já estava deitada no colchão, enquanto a fera sugava seus seios em busca das últimas gotas desperdiçadas, mordiscando seus mamilos como se fossem cerejas que ele arrancaria com os dentes para degustar. Ela cruzou as grandes pernas em torno dele, enlaçando-o, e ele a penetrou. O que se seguiu foi uma trepada selvagem, intensa, com Jessica arranhando as costas da criatura enquanto era preenchida por ele. O instinto animalesco também se apossou dela, que o puxava mais e mais para dentro de si enquanto mordia o ombro de seu amante maldito. Ele puxou os cabelos da mulher, forçando-a jogar a cabeça para trás. A visão daquele pescoço avermelhado, salpicado pelas marcas de seus dentes, excitava-o e enfurecia tanto que com mais e mais força se enterrava no útero dela, que se estremeceu toda enfim por vários segundos, um gozo múltiplo e selvagem que nunca tinha alcançado antes. A sensação ainda permanecia quando sentiu também o vampiro gozar, urrando. Amoleceu completamente afinal, sentindo fraqueza pela perda maciça de sangue.

A mão do vampiro pousou em sua face, abrindo seus lábios com o dedão. Ele cuspiu sangue viscoso na boca entreaberta de Jessica.

"Engula potranca." - ela quase pôde ouvir, e então apagou.


O policial foi chamado pela mãe, que encontrou a filha adolescente com os pulsos cortados na cama. Ele correu os olhos rapidamente pelo quartinho abafado, tentando captar pistas da personalidade da garota e entender o que tinha acontecido: os poucos quadros no local mostravam uma menina solitária, baixinha e acima do peso. Como ela não se enquadrava nos padrões de beleza, definitivamente não era a mais popular da escola. Tão nova, tão retraída, tão... perdida. Agora perdida para sempre, olhos abertos para a morte. A visão do colchão embebido com todo o sangue dela era tétrica.

Diante daquele cenário aterrador, um item pendurado na parede escura ao fundo chamou a atenção do policial: um pôster gigante, onde um vampiro abraçava uma moça alta, que parecia completamente seduzida e entregue, também com seus pulsos cortados.

"Vampiros não existem." - ele pensou, antes de perceber que o olhar vidrado da mulher retratada no pôster era idêntico ao de Jessica!


Comentários do autor

"Vampiros não existem" foi minha participação na coletânea "Vampirus Brasil Collection", mas por problemas de distribuição não alcançou grande parte de meus leitores. Resolvi corrigir isso agora.

Foi escrito originalmente em 19.11.2007.


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