Sistinas
Voz da libido
#29

Voz da libido

"Quero alguém pra compartilhar
Pra compartilhar o resto da minha vida
Compartilhar meus pensamentos mais secretos
Conhecer meus detalhes íntimos

Embora minhas opiniões possam estar erradas
Que podem até ser pervertidas, ela vai me ouvir
E não será facilmente convertida
Ao meu modo de pensar
De fato ela freqüentemente vai discordar
Mas no final das contas, me entenderá"

Somebody - Depeche Mode

Srta. Futilidade tinha um belo cão de raça, apesar de nunca ter ao menos o acariciado. Era a empregada que o levava pra passear. O mesmo acontecia com o carro, sempre o modelo do ano. Nunca o dirigia, para isso tinha motorista particular. As únicas coisas que procurava fazer eram relacionadas à vaidade, tanto pessoal quanto no estilo de vida. Seu motorista sabia de cor todas as lojas favoritas dela, assim como os restaurantes e baladas, e seus respectivos telefones.

Ela se casaria em uma semana com um homem que não amava, mas que era rico o suficiente para manter todas suas extravagâncias, seus gostos e caprichos. Em troca disso, ela estaria sempre linda para que ele a exibisse na alta sociedade, vendendo a imagem de casal bem-sucedido. Fariam sexo duas vezes por semana, e nunca falariam sobre filhos, já que ele era estéril e ela não tinha instinto maternal.

"Essa vida vai fazê-la feliz?"

Foi isso que a voz perguntou na primeira vez em que se manifestou na mente dela. No começo ela achou que era apenas seus próprios pensamento, talvez alguma frustração particular, mas depois passou a achar que não.

Era uma voz masculina. Doce, suave, penetrante e às vezes com um toque sensual.

Atualmente já era tão comum ouvi-la que estava acostumada. Essa voz dizia coisas que ela tinha medo de confessar a si mesma. Desenterrava determinados pensamentos como se a conhecesse profundamente.

Mas a voz não era hipnótica. De maneira alguma. Mesmo assim a mulher faria qualquer coisa que ela pedisse, por livre e espontânea vontade. Como naquela tarde em que fora até a empresa do futuro marido...

O edifício tinha dois elevadores, um que chegava apenas até a metade e outro que subia até o topo. Ela nunca soube quantos andares tinha aquele colosso de concreto e vidro. Seu noivo trabalhava num andar na metade do edifício e a irmã dele no andar de cima. Era uma das organizadoras do casamento, e as duas ultimamente tinham muito que conversar. Ela preferia ir ao final da tarde, quando o edifício ficava quase vazio.

Tão vazio que sua futura cunhada estava acompanhada apenas por um homem no escritório. Os dois discutiam calorosamente algum projeto importante, mas perderam o foco do assunto com a visita da Srta. Futilidade. Sua cunhada desistiu da reunião e por isso dispensou o homem. As duas então conversaram cerca de meia-hora sobre os convidados da festa e os demais preparativos, e então se despediram. Apenas um andar a separava do futuro marido, e ela poderia ter ido de escada, mas chamou o elevador.

A história seria diferente pelas escadas.

Quando chamou o elevador, alguém, despercebidamente, estava parado atrás dela:

— Estive esperando você acabar de falar com sua cunhada. - ele falou, e sua respiração arrepiou o pescoço dela, de tão perto que estava.

Ela voltou-se, assustada, até reconhecer o homem que estava no escritório antes. Pensou que ele tivesse ido embora, mas não. Era bonito assim de perto; tinha olhos insinuantes, queixo másculo e os cabelos bem tratados denunciavam sua vaidade.

"Você o quer, não?" - ressoou a voz em sua mente.

"Não", ela pensou.

"Você quer transar. Quer morder a covinha do queixo dele, enquanto ele te fode."

"Não", ela afastava a tentação, ficando visivelmente vermelha.

"Por que não? Em uma semana estará casada, quem irá saber se...?"

O final da frase veio com o sinal sonoro do elevador, que se abriu. O homem apoiou uma das mãos fortes segurando as portas, e, ao mesmo tempo, permitindo a passagem. Ela reparou nas unhas cuidadas e sentiu o quanto ele era cheiroso também.

"Hahahaha, você ficou molhada. Você o quer."

— Obrigada. - ela agradeceu ao homem, fingindo que não ouvia a voz martelando sua libido.

Fingindo que não estava de calcinha molhada.

Quando as portas se fecharam, ele percebeu a respiração descompassada dela. Rapidamente, o homem deu um soco no botão de abrir as portas, e a agarrou. Sua boca foi invadida pela língua dele, que era áspera e tinha o gosto pungente de cigarro.

A porta fechada do escritório de sua cunhada era a única coisa que a preocupava no momento, além da fivela do cinto dele, que demorava a soltar. Tirou o pau pelo zíper da calça mesmo e o segurou, duro, firme, latejante, nas mãos. O homem apertava com força os seios dela, enquanto beijava e chupava seu pescoço.

Os olhos de Srta. Futilidade viajavam frenéticos pelo corredor acarpetado e vazio, e pela máquina de café ao final dele, enquanto o homem mamava em seus seios.

Ele enfiou a mão por baixo do vestido, afastou a calcinha, e meteu o dedo naquela umidade toda. Percebeu que ela tinha tanta pressa quanto tesão.

— Coloque a mão aqui, e a outra aqui. - ordenou.

A mulher obedeceu, segurando afastadas as portas, empinou-se para trás - "Pronto" - e pediu:

— Agora mete gostoso.

— Não solte as portas, senão esse elevador desce e todo mundo lá embaixo vai saber o quanto você é vadia.

"Você adora ser chamada assim, não?" - resmungou a voz, provocativa.

— Fico doida de tesão quando me chamam assim.

Ele levantou o vestido e rasgou a fina calcinha que atrapalhava seu caminho. Penetrou fundo, de uma única vez.

— Agora rebola, putinha. Rebola pro seu macho aqui. Quero sentir seu caldo escorrer até molhar meu saco.

"Ele mete gostoso?"

— Ele mete gostoso. - ela respondeu, sem perceber que tinha sido em voz alta, embargada de tesão.

— Sim, vou meter bem gostoso. - disse o homem, também sem perceber que a mulher falava sozinha.

Ela gemia alto, querendo e não podendo gritar. Sentia as pancadas secas em sua bunda redonda e o quanto o cara estava duro. Ele afastava as nádegas e assim entrava mais e mais. Ela estava quase gozando.

"Você é muito puta."

— Você é uma puta tesuda, gostosa. Vou gozar... - gemeu o homem, e então puxou os cabelos dela com força. Ficou melhor ainda a penetração, e ela empinava-se mais e mais, já gozando. O homem deixou escapar um grito e também se acabou dentro dela.

Srta. Futilidade, respirando com dificuldade, só então percebeu que tinha soltado as portas quando ele puxou seus cabelos. O barulho que ouviu não era do botão de emergência que ela pensou em apertar. Era de que alguém tinha chamado o elevador.

— Caralho! - gritou o homem, perdido entre subir as calças ou checar se estava tudo muito melado.

Quando as portas se abriram, revelaram seu noivo parado em frente, com mais três ou quatro sócios, além da secretária. Todos boquiabertos.

Eles não se casaram, obviamente. Ela foi expulsa tanto do edifício quanto da vida dele, e teve seu nome nos tabloides com palavras de baixo calão. Só restava se isolar, e foi o que ela fez. Até sua família a repudiou.

A voz insinuava que ela devia deixar a cidade. Recomeçar. E ela, aos poucos, comprou essa ideia. Não aguentava a vergonha de ser apontada, não tinha mais amigos, não podia aparecer nas festas e nem em jantares. Um dia entrou no carro com o que sobrou de seu círculo social (a empregada fiel, o motorista e o cão) e saíram sem rumo, apesar da voz em sua mente às vezes direcioná-la.

Quando a placa indicou que chegavam em Sistinas, a voz disse: "Seja bem-vinda à minha cidade", e ela sentiu vontade de ir embora. Lá no fundo, naquilo que todas as mulheres compartilham e costumam chamar de intuição feminina, já previra algo muito ruim, assim como também já sabia que não podia fugir.

Seu motorista ladeava pelo rio que cortava a cidade, antes de desaguar no grande lago ao sul. Ela ficou maravilhada com as torres gêmeas da Grande Catedral, que antes tinha sido a primeira escola de garotas da região, mas que nos dias atuais era a faculdade de Teologia. Do outro lado do rio, via-se também a Catedral de Nossa Senhora, a mais antiga da cidade, com imensos e lindos vitrais. Um pouco mais atrás estava a maior de todas: a Catedral de Sistinas e sua torre adornada com um relógio feito por encomenda na Suíça.

— Quantas catedrais. Ou essa cidade é muito abençoada, ou é maldita e está precisando exorcizar seus demônios. - a empregada resmungou.

— Chegamos. - disse o motorista. Estavam agora no bairro residencial nobre da cidade, poucos metros antes do famoso clube Princess of the Night, onde a noite acontecia. Morar ali parecia ser um bom começo para uma nova vida. Srta. Futilidade agora se chamava Vika e, ao menos por enquanto, detestava badalações. Vivia reclusa com seus criados.

"Sabe que o motorista come a empregada todas as noites, não sabe?"

— Não, nem quero saber.

"Acha mesmo que pode viver sem sexo?"

— Não penso nisso.

"Ah, pensa sim. Revive aquela foda do elevador a todo momento..."

Tentava negar, mas era claro que não conseguia. Acordou certa noite fervendo de tesão, ouvindo gemidos abafados. Espiando no quarto dos criados, sua empregada mordia o próprio travesseiro, enquanto o motorista a enrabava. Resistiu ofegante à ideia de deitar-se com eles simplesmente por ser a patroa; perderiam o pouco de respeito que ainda lhe dispensavam.

"Você é uma vagabunda enrustida, Vika. Saia e encontre um homem!" - dizia a voz.

Certa noite resolveu conhecer o bar panorâmico de Sistinas que abria a vista para a cidade toda, funcionando logo abaixo do observatório de Algol. Um luar vermelho-sangue indicava que algo certamente aconteceria antes do amanhecer. Como num encontro orquestrado pelo próprio demônio - que se compraz quando destrói algo - o homem do elevador estava no mesmo bar.

"Saudades do perfume dele, ou...?"

Sentou-se à mesa dele, sem ao menos procurar saber se estava sozinho. O olhar do homem foi de grata surpresa, e de alegria genuína em vê-la.

— Nunca tive oportunidade de me desculpar pelo ocorrido, Srta...

— Vika.

— Vika? Quer dizer que seu nome não é mais...?

— Não. Recomecei minha vida e comecei pelo nome.

"Que importa o nome? Está louca pra ouvi-lo te chamando de vadia de novo... Você não presta!"

Ele estava na cidade a negócios, tinha sido demitido devido ao episódio lamentável do passado. Beberam muito, e brindaram à vida. Sexo era a parte boa da vida, concordaram. A conversa seguiu o rumo natural, decaindo com a bebida:

— Mulheres podem fingir um orgasmo. - ela disse, com olhar cínico.

— Sabe, acho uma feminista tão chata quanto um machista. - ele retrucou, com olhar cansado - Não me venha com essas conversas que não levam a nada. E outra, nós, homens, não precisamos simular orgasmos. Gozamos sempre, mesmo.

— Homens broxam. - ela não se deu por vencida.

— E quase sempre tem algo a ver com a mulher que está na cama no momento, querida. Sim, é verdade, broxamos e isso é visível, mas já parou pra pensar nas mulheres que são frígidas, ou que odeiam sexo? Broxam em silêncio, mudas...

Aquela queda de braço sexual acabaria num quarto de motel. A mesma língua com gosto de cigarro, mas as coisas eram mais lentas agora. Sentia sua barriga sendo molhada devagar e o óbvio cubinho de gelo no umbigo. Não, não era uma rapidinha no elevador.

Ela lambia com carinho as bolas, estava tão sedenta de sexo que até sorriu quando ele gozou no seu rosto. Até engoliu um pouco do esperma que melou seus lábios. Apesar do cheiro forte, não tinha gosto de nada.

Ele agora estava por cima, segurando-a com as pernas bem afastadas, enquanto penetrava. O suor pingava nos lábios vermelhos dela. Seus seios enormes, siliconados ao extremo, adornados com uma correntinha de prata que ligava os dois mamilos, balançavam seguindo o ritmo das estocadas dele.

"Hum, eu colocaria só a cabecinha, ficaria tirando e batendo meu pau no seu grelo enquanto morderia e chuparia o biquinho do seu seio..."

Vika teve o primeiro orgasmo só de ouvir aquilo em sua mente, e o homem do elevador ficou satisfeito, achando que tinha mérito. Gozou logo depois também.

"Ele vai comer seu rabo, como um troféu, e sumir. Nem ao menos vai te ligar depois."

— Não coloca aí não...

Ele colocou mas, na verdade, ela nem tinha forças para negar. Sua frase saiu como uma doce mentira, e o homem gozou novamente após algumas poucas estocadas.

"Vai reaparecer só quando sentir tesão em você de novo."

Vika estava feliz, como se pela primeira vez tivesse consciência de que a voz de sua libido era de um homem! E se esse homem existisse de verdade e não só na sua cabeça?

Ao seu lado, o homem do elevador agora roncava. Cheirava à bebida e sexo.

Ela acordou sozinha, horas depois, com apenas o cartão dele como lembrança da noite anterior.

"Você está tão vazia quanto eu estou sozinho, Vika." - disse a voz.

— Você existe? - ela perguntou em voz alta enquanto tomava banho.

"Já sabe a resposta, por que pergunta?"

Vika sabia sim a resposta, mas não tinha, até aquele momento, a exata consciência do que isso representava. Claro que ele existia. Às vezes sussurrava coisas que ela não teria como saber, usava palavras que ela ao menos conhecia, descrevia lugares...

"Liberte-me." - a voz pediu. Nunca tinha feito pedidos aquilo antes.

— Onde você está?

"Preso, é só o que posso dizer."

— Então só está me usando. Como todos os outros homens que conheci.

"É no seu corpo, na sua mente, que me manifesto. Estou sim te usando. Me excito com seus pensamentos sacanas, me alegro com suas pequenas felicidades e me entristeço com suas amargas lembranças."

Ela suspirou.

"Sim, eu te uso. Mas posso usar mais ainda. Sei o que você quer, do que você precisa, Vika."

Tentador. Meu Deus, desde quando dialogavam? Estava ficando mesmo doida, com tanta reclusão? Antes eram pensamentos esporádicos, agora era como se alguém...

"Vivesse dentro de você?"

— Sim.

Essa ideia tinha dois lados: um, que a excitava, diariamente; o outro a amedrontava. Ela não estava sozinha dentro do próprio corpo!

— Quem é você? - quis saber, decidida, mas sem firmeza alguma na voz.

"Sou a pessoa que mais te conhece no mundo."

— Você pode me fazer mal? Pode me machucar? - a pergunta saiu com tom de menininha.

"Se realmente quisesse, já teria feito isso."

Vika desligou o chuveiro do motel. Não gostou da resposta.

— Acho que não pode me fazer mal. Definitivamente, não pode.

A voz se calou naquele momento, mas durante a noite provou ser capaz de interferir: aquilo conversou com ela o tempo todo, e ela não podia dormir. Não pregou os olhos, passou a madrugada toda em claro. Em algum quarto da casa, o motorista lambia a orelha da empregada, encaixando-se ritmadamente entre as coxas dela. Depois gozou numa taça caríssima, e deu para que sua parceira bebesse como um néctar.

Durante o dia seguinte, a voz emudeceu novamente. Só falou quando a noite caiu, e mais uma vez Vika não dormiu. Ouviu quando a empregada acordou no meio da noite e transou com o motorista na mesa da cozinha, para depois tomarem banho juntos.

Vika tentou dormir durante o dia, mas a voz também não deixou. No terceiro dia de tortura, ela entregou os pontos:

— O que você quer de mim?

"Liberte-me."

— Onde você está? Como vou te libertar? Que devo fazer?

Então a voz ditou um endereço, e ela anotou automaticamente. Nem pareceu ser sua mão que escreveu, pois sua mente bloqueou. Por mais que tentasse se concentrar, não guardou o nome da rua e nem saberia chegar até lá, caso precisasse.

"Mande sua empregada fogosa com o motorista fodedor. Eles me soltarão ainda esta noite. Enquanto isso você descansa, já que não dorme há tempos."

Quando seus dois empregados saíram desconfiados, com o endereço anotado num papel qualquer, Vika quis desabar num sono pesado e sem sonhos.


— Já transamos no carro antes, por que você quer agora?

Rua deserta. O motorista sorriu, tirando seu membro para fora da calça. Colocou a mão no pescoço da empregada, forçando-a. Minutos depois os vidros estavam completamente embaçados.

— E as ordens da Vika? - ela perguntou gemendo, de quatro, apoiada no banco.

— Shh. Ela é doida. Fala sozinha. E esse endereço é falso, não existe. Eu procurei.

A empregada estava tão molhada que pingou de seu mel no banco de couro, lembrando-a que teria que lavar o carro da patroa. Pensava nisso, sentindo-se preenchida, quando a porta abriu repentinamente.

Flagrada transando no carro, assustada, ela não reconheceu o vulto feminino contra a luz, que segurava numa mão uma correntinha de prata. Na outra, um porrete.

— O que ela...?

Tomou uma forte pancada na cabeça, antes de terminar a frase. O motorista, desprevenido, teve seu pescoço enlaçado pela correntinha, que quase rasgou a pele antes de cortar o oxigênio para seu cérebro. Morreu estrangulado e caiu lentamente no banco. Ao seu lado, a empregada com o crânio aberto devido à violência do golpe.


Vika acordou encarada por dois olhos vermelhos fumegantes. Seu cão. Nunca tinha prestado muita atenção nele, mas não lembrava desses olhos tão...

"Obrigado por me libertar."

Vika arrepiou-se toda: a voz parecia mais alta, mais clara, como se estivesse mais perto! Ligou a televisão para se distrair. Trocando de canais, passou por filmes antigos, por "reality shows" imbecis, programas de receitas e então seu mundo desabou!

Sua empregada e seu motorista estavam mortos, mostrava o noticiário.

"Eles trabalharam bem. Uma pena."

A voz, combinada com as imagens da tela da tv, não mexeu tanto com ela. Não houve choque. De alguma maneira, já sabia que eles estavam mortos. Desajeitadamente pegou o telefone, sempre sob o olhar vigilante do enorme cão preto. Ele nunca pareceu ameaçador antes, mas agora...

— Atende! - ela gritou, após o segundo toque. O mastim preto a encarando, enigmaticamente.

O homem do elevador resmungou algo do outro lado da linha, talvez estivesse dormindo.

— Me ajude! Pode vir à minha casa?

— Vika? Que houve?

— Eu, eu não sei! Acho que fiz algo horrível, quer dizer, soltei algo, libertei, e agora não sei!

— Espere, não estou entendendo nada. Calma, fale devagar!

— Vem pra cá! Por favor, não quero ficar sozinha!

Olhou para o cão nesse instante. Ele deixava os dentes à mostra. Uma mordida daquelas, e...

— Me dê o endereço. Em uma hora estarei aí. Seus empregados estão no noticiário!

— Venha enquanto é dia! - quando ela desligou o telefone, escutou em sua mente:

"Estou decepcionado com você, Vika."

O homem do elevador era mesmo pontual. Tocou a campainha várias vezes e mesmo assim ninguém lhe atendia. Num rompante de curiosidade rodeou a casa olhando pelas janelas que encontrava, até que enxergou algo:

Vika estava de pé no meio da sala, mãos para cima, amarrada pelos pulsos. O mastim negro parado à sua frente. Ele resolveu entrar, pensou em forçar a porta da frente, mas estranhamente não estava trancada.

Assim que pisou na sala, percebeu que tinha cometido um erro. O cão saiu de sua letargia e rosnou uma vez; e depois outra, um pouco mais alto.

— Vika? Que está acontecendo? - ele perguntou, os olhos correndo pela sala procurando algo para se proteger do mastim.

A mulher não falava, apesar de não estar amordaçada. Apenas ouvia aquela voz:

"Um cão desse porte é bem mais rápido que um homem, e sente o medo da presa pelo cheiro."

— Vika? Fale comigo!

O cão, que estava sentado até o momento, levantou-se e rosnou a terceira vez. O homem quis correr, sem saber o que fazer, de olho no cachorro.

"Nunca, nunca olhe uma fera dessas nos olhos. Ele encara isso como um desafio."

Com um movimento brusco, o homem correu.

"Também nunca corra, nunca fuja. Cães são herdeiros dos lobos, tudo o que foge deles é considerado uma presa a ser caçada e abatida."

O cão o alcançou antes mesmo que chegasse a porta.

"Uma mordida com mais de 100kg de potência, e..."

O homem gritava, debatia-se, tentava segurar a boca do mastim longe de sua carne, mas não conseguia. Ele se julgava forte, mas o animal era mais.

"Dizem que o cão..."

-… reflete um pouco a personalidade do dono... - disse Vika, parada na porta, como se nunca tivesse sido amarrada.

O homem, agonizando de dor, apenas tentando se defender das mordidas da fera, demorou um pouco para entender:

— Foi você. O tempo todo. Seus empregados mortos... sua louca!

Esse último grito dele selou seu destino, pois o cão, já cego pelo sangue, mordeu com mais determinação.

"Que tal sair agora e respirar um pouco?" - foi a última coisa que a voz disse. Uma voz que, na verdade, nunca existiu. Assim como o cão, que não tinha saído de inferno algum, apenas estava protegendo a casa de sua dona. Era apenas Vika - "Foi você. O tempo todo." - e ela agora dirigia e estava solta numa cidade cheia de monstros noturnos.

E ela era apenas mais um deles.


Comentários do autor

Alucinação é a percepção real de um objeto inexistente. Tudo que pode ser percebido pelos cinco sentidos (audição, visão, tato, olfato e gustação) pode também ser alucinado. As mais freqüentes são as alucinações auditivas e visuais.

O fenômeno de perceber uma voz que não existe é a Alucinação propriamente dita e, interpretá-la como sendo a voz do demônio, de Deus, dos espíritos mortos ou uma audição telepática já faz parte do DELÍRIO, que freqüentemente acompanha a Alucinação.

"A voz da libido" foi publicado originalmente em 12.04.04. Reescrito em 2012 para o relançamento do site.


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