Sistinas
Os hedonistas - Parte 1
#41

Os hedonistas - Parte 1

A sala estava à meia-luz, quando o homem mais alto e de maior envergadura entre eles citou:

-Malus, etiamsi regnet, servus est, nec unius hominis, sed, quod est gravius, tot dominorum, quot vitiorum.

Depois da frase, um silêncio dramático encheu o ambiente, até ser cortado pelo som de um grande gole de vinho. O degustador, um ruivo de pele avermelhada não tão bem-vestido nem tão alto quanto o orador, perguntou:

— O que significa exatamente essa frase, Draghinaz? Apesar de não ter entendido uma palavra sequer, seu latim foi tão eloquente, tão impecável, que me senti num sermão dominical em alguma igreja católica da idade média! - seu tom de voz era divertido.

Draghinaz não era o líder daqueles homens reunidos ali - o clube Malebranche - mas gostava da ascendência que tinha sobre eles. Talvez fosse sua inteligência, ou sua aparência feia que intimidava e lhe dava uma pecha de dragão envelhecido. Ele olhou para o ruivo em suas faces sempre avermelhadas, e calmamente respondeu:

— Interessante sua observação, Rubicante. - Draghinaz sempre se ria por dentro do codinome estranho do amigo. Claro que aqueles não eram seus nomes verdadeiros. Seus nomes verdadeiros estavam em contratos sociais de grandes empresas, em títulos e em contas milionárias espalhadas pelo mundo. Mas ali dentro daquela sala eles se tratavam por codinomes.

— De fato, - continuou Draghinaz - foi Santo Agostinho que falou isso em seu "De Civitate Dei": O pecador, ainda que seja rei, é escravo, não de um único homem, mas de tantos senhores quantos sejam seus vícios.

— Bela frase, afinal somos todos senhores e escravos aqui, Draghinaz. - quem falou dessa vez foi o obeso Ciriatto, um desagradável membro do Malebranche. Virou na boca escancarada sua taça de Cabernet, de maneira deselegante, como se estivesse morrendo de sede.

— Fala o glutão. - desdenhou Rubicante - Se depender do seu estômago será um eterno escravo do prazer de comer, Ciriatto.

— E não somos todos escravos de nossos prazeres, ruivo desaforado? Você com suas putas e depravações, Draghinaz com seu pátio cheio de carros que ele nunca terá tempo de dirigir a todos...

— Eu dirijo todos eles. - interviu Draghinaz. - Com tanta vontade quanto Rubicante fode uma puta ou você come uma lagosta.

— Mas eu não fodo putas. Putas são mercadorias, minha fonte de renda. As minhas garotas são as melhores, são acompanhantes de luxo, dominam diversas línguas...

— Lambem uma cabeça de pau divinamente mesmo. - resmungou Ciriatto.

— ... sabem se portar em eventos e na cama. - continuou o ruivo - São perfeitas para acompanhar homens de negócios distintos como nós. Eu, por exemplo, só fodo com mulheres sérias, mães e filhas de família...

— Homens de negócios, pois sim! Somos os DONOS dos negócios. Acumulamos riquezas para manter nosso "hedoné", e nessa busca incansável de prazeres e mais prazeres perdemos nosso propósito de viver. E com isso nossa distinção também se perdeu.

— Foi pensando assim que nos reunimos, lembram? Fundamos o clube Malebranche depois daquele torneio de golfe... onde era mesmo?

— Por Deus homem, como vou me lembrar? Tantos anos atrás.

— Talvez Scarmiglione se lembre. Ele é o mais velho.

— Scarmiglione não virá hoje. Nem nunca mais.

O homem que soltou a frase, parado à porta, era tão distinto quantos seus companheiros da sala. Igualmente rico, mas dono do nariz mais estranho que eles já tinham visto. Apesar de todo seu dinheiro, nunca cogitou a hipótese de fazer uma cirurgia estética, parecia ter orgulho de sua aparência.

— O que está nos dizendo, Cagnazzo?

— Chego atrasado e com péssimas notícias. Encontraram Scarmiglione boiando nas águas que cortam Sistinas.

Os homens empalidecem, todos indignados com a perda de um membro do clube. A mesa de centro entre os homens não é feita de madeira, mas sim de obediência. É uma mulher vestida com fantasia de empregada, ajoelhada e com o rosto no chão. Suas mãos algemadas jogadas para cima, unidas e apoiadas nas nádegas, dão apoio ao tampo de vidro formando a mesa, onde repousam as taças e a garrafa de Cabernet. Seus tornozelos, mantidos juntos por decoro, também estão algemados. Era esse o único elo entre aqueles homens, serem parte de um clube degenerado, onde celebram o hedonismo como religião e filosofia de vida, extravasando seus desejos, suas piores e distorcidas vontades. É Draghinaz, o líder informal do Malebranche, quem pergunta:

— Algum sinal de violência?

— Não, nenhum. Exceto o fato de aparecer boiando no rio, o que já é por si só um sinal de violência. Ele tinha inimigos?

— Qual homem não coleciona um armário de esqueletos em sua ascensão ao poder? Devia ter, sim, mas nenhum que soubéssemos. Temos tanto dinheiro que hoje em dia compramos até nossos inimigos. Fodemos suas esposas, cunhadas e filhas em suas camas, como mera distração. - falou Rubicante.

— Não, não temos inimigos declarados. - concluiu Draghinaz, espantado com a capacidade do colega ruivo falar de sexo mesmo quando o assunto é a morte.

— Vamos Cagnazzo, diga! Deve ter algo, a polícia achou algum veneno, alguma marca, cicatriz...? Um tiro, talvez?

— Encontraram sim traços de uma substância, mas não é veneno. Na verdade, é algo bem comum, mas ficou suspeito dadas as circunstâncias da...

— Que droga, homem! Deixe de ser tão formal e fale logo!

Cagnazzo fixou longamente o olhar no ruivo sentado, demonstrando alguma raiva, mas desvendar a morte do amigo era mais urgente para ele. Enfim suspirou:

— Pepinos.

— Pepinos?

— Pepinos, Draghinaz.

— Pepinos?

— Você é surdo, Rubicante?

— E desde quando um pepino mata um homem de nossa estatura? Aliás, qualquer homem, mesmo inferior?

— Pombas, como vou saber Ciriatto? Você é o glutão aqui. E não foi UM pepino. Vários, tanto que a polícia acha que ele foi engasgado com pepinos.

— É a morte mais estúpida que tenho notícia, meus companheiros. - falou Draghinaz, em tom ponderado, como que se colocando no lugar do falecido na hora da morte. - Será que estava embriagado e caiu no canal?

— Isso. E podia estar comendo uma puta num iate. Ele tem vários iates. Eu não fodo depois de comer, dá uma indigestão do cacete. Ele pode ter passado mal e caiu n'água.

— Nada além dos pepinos, Cagnazzo? - desconversou Draghinaz, claramente desistindo das opiniões recheadas a sexo do ruivo.

— Bem, sim. Tem mais uma coisa estranha: o ânus dele estava completamente dilacerado.

Rubicante segurou o riso, debaixo do olhar feroz que Draghinaz lhe lançou.

— Quão trágico. - se limitou a comentar Ciriatto.

— Bem, creio que essa péssima notícia encerra nossa reunião por hoje, cavalheiros. Não tenho estômago para especular sobre esses assuntos, e coisas mais agradáveis pedem minha presença.

— Como acelerar um bólido.

— Como acelerar um bólido. Exatamente Ciriatto. - concluiu Draghinaz, sereno. Antes de sair da sala deposita sua taça e aponta para baixo, para a moça algemada que serve de mesa ao clube - Vocês sabem por que ela não pode beber?

— Não.

— Na Grécia antiga só as mulheres podiam comercializar vinho. Mas se fossem pegas bebendo, eram queimadas vivas. Apesar de deturpar as coisas ao meu prazer, eu gosto de manter certas tradições. - ele responde aos amigos, e sai.

Um imponente edifício envidraçado no coração financeiro de Sistinas era o templo moderno daqueles homens. As reuniões sempre eram na cobertura, de onde podiam enxergar cada pedaço da cidade amaldiçoada. Um fútil e caríssimo shopping funcionava nos pisos inferiores, aberto apenas à alta sociedade, onde geralmente Rubicante gostava de caçar e bajular mulheres de requinte para reduzi-las algumas horas depois a messalinas encharcadas de esperma e urina. O falecido Scarmiglione às vezes dividia a mesa do restaurante com o glutão Ciriatto para conversar sobre gastronomia, política e, claro, negócios. Draghinaz não gostava do shopping, dizia que o lugar não tinha apelo nenhum a ele, exceto se uma concessionária de veículos importados abrisse naquele piso.

Assim como Draghinaz, Cagnazzo também não gostava do shopping. Mas naquela noite deixou-se entrar na tabacaria enquanto remoía pensamentos sobre o falecimento de Scarmiglione. Em sua mente vinha a imagem do velho amigo com seu eterno cabelo bagunçado. Pensava no quanto ele gostaria de uma caixa de charutos, mas não conseguia esquecer o detalhe mais estranho da morte, algo que ele não contou aos companheiros do Malebranche:

Scarmiglione não tinha um pingo de sangue no corpo quando o retiraram do rio.


No Princess of the Night o clima estava bem animado. Valerie, como sempre, controlava o ambiente, instalada em seu mezanino. O povo dançava lá embaixo, embalados pelo som poderoso do Rammstein, Ich Will, "Eu quero". Era um pedido pessoal dela ao DJ residente da casa, já que gostava daquela música. O alemão definitivamente não era a língua pátria da vampira, mas ela entendia algumas frases:

"Você consegue nos ouvir? Nós te ouvimos

Você consegue nos ver? Nós te vemos

Você consegue nos sentir? Nós te sentimos

Nós não te entendemos

Eu quero..."

Nesse instante um homem chama a atenção da vampira, não por se destacar na multidão que dança enlouquecida, mas pelo cheiro. Ela já tinha sentido aquela fragrância antes, e paranoica como estava com a presença de Sammael, resolveu ter uma conversa com aquele cara. Poderia bem ser um espião, dado o cheiro adocicado do suor medroso dele, que perfume algum conseguia esconder dela. Ao término da música desceu até a pista e o abordou.

— Venha, sente-se comigo. Não é a primeira vez que te vejo aqui.

— Sempre sabe quem te visita?

Ela o conduzia em silêncio e apenas sorriu enigmaticamente, tão próxima que chegava a ser ofensiva.

— Tenho curiosidade em saber tudo de você. Desde quando é a proprietária? Sabe, não existem registros, é como se da noite pro dia você acordasse dona desse lugar maravilhoso. Quando chegou em Sistinas?

— Você faz perguntas demais. Quem quer saber dessas coisas?

Uma gotícula de suor brotou na testa dele com a dureza do olhar da vampira.

— Eu já disse, pura curiosidade.

— Você já disse, mas eu não acreditei. Sei que está aqui para me sondar. Se não me disser o nome de quem te mandou AGORA, vai se arrepender.

— Vai manchar a noite de seu estabelecimento com violência? O que uma mulher tão delicada como você faria comigo? - ele tentou parecer corajoso, mas a verdade é que a vampira já o tinha intimidado com o simples tom de voz usado.

— Bem, não costumo ser violenta. Sou suave, mas mortal. A arma que você conseguiu trazer aqui para dentro de minha casa já sumiu do seu casaco, por exemplo. Agora me diga, quem te mandou?

Assustado, o homem apalpa os bolsos apenas para descobrir que Valerie já o tinha desarmado. Desconcertado, não conseguiu mais olhar para ela:

— Eu represento um homem muito poderoso, e rico.

— Eu quero o nome.

Quando ele disse o nome, Valerie não soube quem era. Ele complementou a informação dizendo apenas que seu patrão era um magnata e que nunca assinava seu nome, usando sempre testas-de-ferro em seus empreendimentos. Quando perguntado sobre o interesse do patrão nela, Valerie quase se assustou com a resposta:

— Ele acredita que você seja uma vampira.

— E ele acredita em vampiros? - ela se esforçou para soar natural.

— Sim. Ele achou um amigo boiando no rio sem uma única gota de sangue no corpo. Desde então acredita em vampiros, está obcecado com o tema. Ele acha que você pode ser uma.

Valerie era muito bem informada sobre o que acontecia na cidade. Assistia noticiários e lia jornais para saber o que se passava em seu mundo, principalmente nas horas em que sucumbia ao sono dos amaldiçoados. Teve uma sensação esquisita quando recolheram do rio o cadáver de um certo barão do tabaco. Se existia um novo vampiro na cidade, ela precisava chegar nele antes de Sammael, quem sabe até o beber e se fortalecer para possíveis confrontos.

— Venha comigo, preciso te mostrar algo. - Valerie disse, tranquila.

— Espero que seja a saída. Você me dá arrepios. É tão bela que qualquer homem trocaria de lugar comigo nesse momento para estar ao seu lado, mas quando está próxima... tem algo assustador em você.

— Algo? E o que seria? - ela perguntou enquanto abria uma porta e o conduzia novamente.

— Não saberia explicar. Olha, vou embora e digo ao meu patrão que não existe nada aqui. E não existe mesmo.

— Não acredita em vampiros? - a voz dela soou atrás dele.

— Não. - ele respondeu, sem firmeza alguma. Na verdade, sua nuca arrepiou e suas pernas amoleceram. Teve certeza naquele minuto que sanguessugas existiam sim e que ele estava condenado. Valerie fechou a porta, cortando o elo dele com o mundo. Estavam agora numa sala nua.

— Pois deveria. - a vampira sussurrou e o beijou, mas o olhar dela enquanto procurava a língua dele foi a coisa mais horrível que viu na vida.


Cagnazzo adora cães. Estava em seu canil particular quando o farrapo humano chegou, desesperado, e se jogou aos seus pés.

— O que aconteceu? - pela aparência, ele tinha sido torturado a noite toda.

Incapaz de falar, o homem de olhar esbugalhado parecia querer gritar de dor. Mas só conseguia grunhir e tinha as mãos ocultas nas mangas do paletó ensanguentado. Quando Cagnazzo tentou tocá-las, o homem encolheu instintivamente os braços, como um animal de pata ferida que receia ser machucado novamente.

— Fale, rapaz! Encontrou a misteriosa sanguessuga noturna? O que descobriu?

O homem abriu a boca e uma baba vermelha lhe escapou queixo abaixo, já que não conseguia cuspir sem a língua.

— Bom Deus, o que te fizeram? Então ela é mesmo uma vampira?

O homem apenas tremia convulsivamente e seguia grunhindo. O som irritava profundamente Cagnazzo, e sua paciência foi se esgotando rapidamente:

— Suponho que também não consiga escrever...

Percebendo que o patrão o apagaria, o homem começa pateticamente a balbuciar entre saliva e sangue, esforçando-se ao máximo para se expressar, sem sucesso algum. Cagnazzo olha para um de seus seguranças que acompanhavam a cena e fez um claro sinal de degola. Abandonando o canil, ele ainda ouve os irritantes e entrecortados soluços finais do condenado homem que enviou para investigar Valerie e o Princess of the Night.

Mais tarde ele estava em seus aposentos, aprontando-se para mais um encontro noturno do clube Malebranche. No passado as reuniões eram mais alegres, regadas a bom vinho, cardápios suntuosos, mulheres belíssimas e bem pagas para o sexo. Afinal, eles se reuniam para celebrar o hedonismo, pura e simplesmente. Mas agora estavam envelhecendo, nos últimos tempos os encontros pareciam mais melancólicos, com um tom exagerado de saudosismo, sinal de que o tempo deles estava terminando...

E agora um deles estava morto. Cagnazzo não tinha falado para nenhum de seus companheiros sobre sua suspeita de vampirismo, nem citado sobre a falta de sangue no corpo de Scarmiglione. A verdade é que seus velhos amigos estavam insensíveis à perda e não fariam nada a respeito, exceto se fosse algo que ameaçasse a todos. Cagnazzo mesmo não sabia o que pensar.

"Vampiros não existem, pombas!" Ao terminar o nó da gravata, enquanto fechava o guarda-roupa, viu de relance no espelho um vulto nas sombras de seu quarto, ao lado do abajur. Ele virou-se depressa, num reflexo infantil de puro medo.

Sentada na cama dele, ela descruzou as pernas brancas como marfim, tão belas e bem desenhadas como uma escultura, a voz saiu melodiosa:

— O que quer saber de mim?

Ela lembrava um predador hipnotizando a vítima com a força do olhar. Era a imagem que ela evocava sentada à cama de maneira delicada, mas com os músculos retesados, pronta para dar o bote a qualquer instante. Diante da mudez de Cagnazzo, ela continuou:

— Deveria ter culhões de ir perguntar pessoalmente. Mandar um mero capacho foi grosseiro. Mas eu fui boazinha, deveria tê-lo obrigado a comer seus próprios dedos...

— Capachos e cães... - ele começou, assustado, mas sem querer transparecer - São obedientes e leais. Você os alimenta, treina, e tem um amigo fiel para o resto da curta vida deles.

— Cães? - ironizou Valerie.

Cagnazzo estacou, pensativo, tentando ouvir qualquer coisa, quando percebeu o silêncio.

— Meus cães!

— Eles tiveram uma boa refeição, eu diria, algo que não fazia parte do cardápio original.

Cagnazzo só pensava em cães mastigando dedos agora. Os olhos arregalados procuravam freneticamente por um milagre que não estava ali, alguma coisa que o salvasse daquela mulher tão linda quanto terrível.

— Agora me conte em detalhes como chegou até a mim.

— Um... amigo meu foi encontrado morto boiando nas águas de Sistinas. Seu ânus estava totalmente lacerado. Somos hedonistas, todos... Então, sabe, pensei em algum exagero sexual. Ele poderia ter um amante e ter sido estuprado, algo do tipo. Ninguém de nosso círculo estranharia. Eu, por exemplo, pago mulheres para meus cães montarem às vezes...

— O barão do tabaco, sei. - a vampira ponderou, enojada com a confissão de zoofilia - Ele estava para o tabaco assim como você está para a jogatina.

— Vejo que é bem informada.

— Seu capacho preencheu as lacunas que eu não sabia. Por que vampiros, e por que eu?

— Qualquer pessoa tem no corpo, no mínimo, um décimo de seu peso só de sangue. Ele não tinha nenhuma gota! Pensei em vampiros pelo sangue mesmo. Da falta absoluta dele.

— Seu amigo era bem corpulento. Então devia ter muito sangue. Muito sangue mesmo. - Valerie divagou, levantando-se. - Quem beberia tudo isso?

— Está me dizendo que não foi você? - Cagnazzo perguntou, se afastando levemente para trás.

— Diga-me, senhor jogatina legalizada; você, como o empresário agressivo que é, tolera intrusos em seus negócios? - Valerie colocou sua pergunta com autoridade, ignorando a dele.

Cagnazzo não sabia o que responder, já que imaginava que isso selaria seu destino. Permaneceu quieto.

— Eu acho que não. Eu também não tolero.

Cagnazzo tentou correr para a porta, mas antes mesmo de suas pernas obedecerem, Valerie já tinha saltado e caído por cima dele no tapete felpudo: "Se quiser, pode começar a gritar agora."

Enquanto ele se debatia, apenas para descobrir tarde demais o quanto a vampira era forte, ela encostou os lábios em sua orelha e falou baixinho:

— Gritos me excitam...


— O que está dizendo, Draghinaz? Existem pessoas que realmente fazem isso?

— Claro. Chama-se vorephilia, uma fantasia erótica, uma parafilia de comer ou ser comido vivo. Geralmente os amantes se fantasiam de animais selvagens, ou decoram o ambiente da transa de acordo. O predador come a presa.

— Acho mais interessante contratar uma garota fantasiada de colegial para se ajoelhar entre minhas pernas nuas e lamber um pirulito. Devia experimentar, é divino! Depois dela terminar o doce, você a fode com tanto vigor como um adolescente em formatura!

— Imagino que sim, Rubicante. Passa pela minha cabeça a cena de uma jovem lambendo esse seu saco velho, vermelho e enrugado.

— Falo sério, deve experimentar, Ciriatto! É mil vezes mais excitante do que uma dançarina do ventre se contorcendo, ou que um strip-tease! Mas quando o tema é cozinha erótica, eu adoro enfiar coisas no corpo da mulher para comer. Encha uma vagina com morangos e chantilly e depois coma ali mesmo. Você nunca mais fará sexo oral numa mulher sem esses detalhes...

— Picacismo. - complementou Draghinaz, sério - Aliás, qual é o jogo de hoje? Como é a vez do Rubicante, imagino que seja alguma depravação sexual.

— Esperemos Cagnazzo chegar. Mas já lhes adianto: no banheiro tem duas jovens freiras. Uma delas usa uma espécie de arreio que não a deixa fechar a boca. A outra deve nos chupar - alternadamente, claro - lambuzar os membros com óleos e nos masturbar até gozarmos todos na boca da primeira freira. Depois essa engolidora vai cuspir nosso esperma numa taça com vinho e a outra beberá esse néctar. Quem ainda tiver pique depois disso, poderá montar as duas. Aliás, tem um plug anal enfiado na engolidora, e pendurei nele um delicado rabinho de cavalo. Ela estará mais do que pronta para nos receber naquele rabo quente...

— São freiras de verdade, ou suas garotas de programa fantasiadas com hábito?

— O excitante da coisa é que são freiras de verdade, não me subestime, Draghinaz. Uma mera fantasia de freira seria deselegante, perderia o propósito. É como pensar em cozinha erótica e você só querer transar com a patroa em cima da mesa. Previsível e chato. - Os olhos do ruivo brilharam nesse instante - O artefato que uso pra manter a boca dela aberta é uma peça e tanto. Dá pra enfiar o cacete tão fundo quase até provocar o vômito.

— Não aguento mais ver o saco enrugado do Rubicante, por Deus! - riu Ciriatto. - Prefiro sua ideia de comer algo dentro da vagina delas.

— Também não suporto seus arrotos, glutão. E várias vezes já te vi regurgitar. Mesmo assim participo de seus jogos. - resmungou Rubicante, devolvendo a brincadeira. - E não vá urinar nas minhas éguas dessa vez! Só eu posso fazer chover nelas.

— Será um prazer roçar as amígdalas de suas boas meninas, Rubicante. - interrompeu Draghinaz, com ar preocupado - Mas onde está Cagnazzo, afinal? Uma das regras é nunca se atrasar para nossos encontros, e com essa ele já se atrasou duas vezes!

O mau pensamento passou bem claro pela cabeça de todos, como uma premonição, mas só Ciriatto teve coragem de repeti-lo em voz alta:

— Quando se atrasou da outra vez, trouxe notícia de morte. E se agora ele estiver morto? E se aquele maldito narigudo estiver morto?

Todos responderam com silêncio. Draghinaz, sem se explicar, caminhou até a porta do banheiro. Lá dentro de fato tinha duas freiras, uma vestida e a outra apenas de calcinha e com o rústico aparato de metal preso em couro na cabeça, repuxando seus lábios. Ela salivava obscenamente, com os dentes e língua à mostra. O líder do Malebranche se excitou ao ver a língua dela se contorcendo dentro da boca, mas manteve o controle e ordenou:

— Saiam as duas. Se recomponham antes, mas saiam pelos fundos.

Como um pinguim desajeitado, a freira de calcinha saiu rebolando para se vestir, com aquele rabo de cavalo pendurado no plug anal balançando provocativamente conforme os movimentos de seus quadris. Em cada nádega uma palavra estava tatuada: Mala e Coda, uma piada elegante que só um depravado membro do Malebranche poderia ter pensado.

— Que está fazendo, mandando minhas putinhas da fé embora? - as faces do ruivo queimavam de tão vermelhas.

— Não vê que nosso mundo está desmoronando, Rubicante? Outro dia faremos seu jogo. Tente contato com Cagnazzo, mas nós sabemos que ele nunca mais irá responder!


Cagnazzo nunca mais respondeu, realmente. Foi encontrado destroçado em seu próprio canil. Ciriatto não gostava daquela linha de raciocínio, mas em dois dias dois membros do clube Malebranche estavam mortos, e ambos sem sangue algum. O glutão descartava a possibilidade de inimigos do mundo dos negócios, já que eles atuavam em áreas diferentes... mas se não era isso, o que mais poderia ser?

Ciriatto não sentia fome como uma pessoa normal. Ele vivia num estado constante de fome, uma coisa sem fim nem explicação. Suas roupas sempre tinham alguma mancha de molho, ou de comida. O porcalhão não conseguia parecer tão nobre quanto Draghinaz, nem tão respeitável como Scarmiglione, ou viril como Rubicante, por exemplo. Mas não se culpava, já que o ato de comer bem e fartamente era o que lhe mantinha vivo. Era seu vício, mas também era onde buscava forças. Como agora, - um homem assustado com as mortes dos amigos - seu único impulso era comer.

Já fazia algum tempo que não degustava um bom sushi. Lembrou de um lugar onde Scarmiglione costumava ir às vezes, empenhado em impressionar clientes potenciais, chamado "Mistérios do oriente". Um típico restaurante encravado no bairro oriental de Sistinas. A noite ainda prometia, mesmo com a desagradável notícia da morte de Cagnazzo e o mal-estar no clube Malebranche.

Enquanto se dirigia ao restaurante, tentando se convencer que comer naquele momento era a melhor coisa a se fazer e com a consciência pesada de pensar friamente em seu apetite diante da morte de outro amigo, relembrava o tema discutido com Draghinaz e Rubicante mais cedo. Draghinaz discursava que a comida atiçava todos os sentidos, como o aroma excitava o paladar e a disposição de um belo prato agradava ao olhar. Já Rubicante tirava de seu repertório de depravações sexuais vários casos como o de Cleópatra, que se lambuzava em mel e amêndoas, esperando pelas línguas famintas de seus amantes lambendo seu corpo.

"Outra coisa: sabe quando uma mulher se masturba usando salsichas ou salames? Isso tem um nome: botulinonia."

"Eu adoro comer coisas que as mulheres se enfiam." - ele respondeu à Rubicante, mentalmente, já estacionando o carro.

Uma vez dentro do restaurante, todas suas tristezas se dissiparam. Ciriatto estava em casa! Gostava de se empanturrar de comida, se emporcalhar com os alimentos e comer com prazer. Pro diabo com a etiqueta e o requinte dos companheiros de Malebranche. Por isso evitava comer na presença deles, que nunca o aceitaram bem por ser grosseirão à mesa. Quando o velho japonês lhe disse um "Yokoso" sorridente e bem amistoso na entrada, ele relaxou, reparando no lugar: uma equipe de três mulheres, duas delas muito sorridentes e enquanto a terceira permanecia mascando algo que parecia ser... rodelas de pepino!

Claro que era uma coincidência. Mórbida, mas ainda assim coincidência.

— Vai querer experimentar nosso nyotaimori, senhor? - perguntou o itamae.

— O que exatamente seria isso? É de comer, suponho. - e riu da própria piada sem graça.

O velho apontou alguns quadros pendurados na parede, onde uma japonesa estava deitada nua à mesa, coberta de sushi e cercada pelo que parecia ser uma reunião de negócios: vários homens de terno e até mesmo uma mulher tatuada e de kimono. Eles comiam o sushi diretamente do corpo da japonesa.

— Ah, "body sushi", não, obrigado. Mas eu tenho um amigo que vai adorar isso. - ele comenta, ligando imediatamente no celular de Rubicante.

— Escute, já comeu sushi em cima de uma mulher pelada? Pensei em você. Não quer experimentar hoje? Estou num restaurante chamado "Segredos do oriente".

O ruivo resmungou algo sobre o desrespeito de Ciriatto com a morte de Cagnazzo, e desligou.

— Não sexo. Apenas comida. Sexo não, viu? - respondeu o dono do restaurante, interpretando o comentário de Ciriatto ao telefone como ofensivo.

— Não se preocupe. Quero apenas comida. Traga seu melhor sushi.

Dizer esse tipo de frase era como desafiar o itamae, mas Ciriatto não imaginava a gafe que acabara de cometer. E estava muito interessado em comer para reparar que a mulher do quadro na parede era a mesma que comia rodelas de pepino, de maneira até irritante, atrás do balcão. Quando foi servido, o velho lhe disse "Meshiagare!" e fez um gesto amplo com os braços que podia ser interpretado como "coma à vontade".

Ciriatto empunhou seu hashi e saiu espetando o sushi, como um teste. O velho que acompanhava a cena parecia cada vez mais impaciente com o desagradável Malebranche. O itamae, irritado, quase abandonou o balcão assim que viu o cliente espetar um hashi no gohan. Não era a primeira vez que via um ocidental cometer tal grosseria: eles ignoravam que os japoneses oferendavam aos mortos gohan oferecido com hashi espetado em cima. "Não é necessário destruir comida. O prato que lhe sirvo já vem cortado no tamanho certo."

Alheio ao comentário, Ciriatto buscou o molho. Era um apaixonado por molhos! E shoyu era a melhor coisa pra disfarçar o sabor de um peixe cru. Derramou o molho na comida toda, em desrespeito ao trabalho do itamae. Quando pediu "o melhor sushi", o velho criou uma refeição de sabor diferenciado, mas que agora nadava num mar de shoyu misturado com wasabi.

Não era mais apenas o velho que estava desagradado com Ciriatto, mas as mulheres atrás do balcão também. A que mastigava pepinos destilava hostilidade no olhar. Um clima não muito amigável envolveu o porcalhão do Malebranche, que agora lambia o hashi.

— Nunca vi em minha vida alguém tão deselegante com as antigas tradições. Estou chocado.

— E eu estou satisfeito. Por ora. - respondeu Ciriatto, respingado de molho, como sempre.

— Desrespeitou todo nosso trabalho e nossa comida. Como pode se dar por satisfeito?

— Ei, é apenas comida, certo? - ele ainda passou a ponta do dedo indicador com wasabi e levou aos lábios.

— Não, estou falando de nossas tradições. Você desrespeitou todas e foi extremamente desagradável. Creio que merece uma lição de nossa casa. Naoko!

Naoko era tão frágil que quase parecia uma criança. Tinha no rosto uma expressão de que vivera muito, nada relacionado com idade, mas com experiência de vida mesmo. Movia-se rapidamente, mas sempre com graça e leveza. Aquela coisa de não desperdiçar movimentos, até parar ao lado do velho.

— Uma gueixa? O que uma gueixa pode fazer, a não ser obedecer?

Naoko olhou com desdém para Ciriatto, comprimiu os olhos de maneira agressiva e parou de mascar a rodela de pepino. Ela abriu a boca na direção dele, e o glutão - gritando - entendeu por que ela permanecia o tempo todo de lábios fechados...


Draghinaz olha sério para a parede de sua garagem. Tinha mania de atender telefonemas importantes em meio a seus carros:

— Fígado?

— Sim, além do sangue todo ele perdeu o fígado. - repetiu Rubicante, do outro lado da linha - E você não acha estranho esse lance de perder o sangue todo pelo rabo??? Que tipo de sádico está fazendo isso?

— O fígado não é um órgão rico em sangue...? Importante na circulação sanguínea, ou algo assim?

— Eu vou lá saber, Draghinaz? Sei lá! Quero saber quem está fazendo isso!

— Um vampiro. - o líder respondeu calmamente.


Continua na segunda parte, O beijo negro


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"Os hedonistas" foi escrito em 30.04.07.


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